MEUS OLHOS AZUIS

Alcenor Candeira Filho

1

Meus olhos azuis

Não queriam ver mentira

Onde há tanta mentira

Não queriam ver fome

Onde tanta fome

Nem sangue

Onde tanto sangue.

Meus olhos azuis

Não queriam ver poema

Tão duro tão tosco

Quanto este poema.

2

Sonhar é perder tempo

Que se ganha olhando sem sonhar

Para sombrias sombras entre ruínas.

Portanto

Meus olhos azuis

Que nem são azuis

Nada imaginam:

Limitam-se a ver

A verdade crua e cruel

Do chão nosso de cada dia.

3

Mas em Parnaíba

Onde nasci e estou

Gosto de olhar sem compromisso

As curvas do cais do Igaraçu

Especialmente aos domingos de dia

Quando têm os olhos  mais tempo

Para fitar as curvas do rio

Curvas que nunca ousei cantar

Nem ousarei fazê-lo

Além de contemplá-las para não esquecê-las.

4

No rio mais raso e mais estreito que outrora

Por onde só passam agora

Pequenos barcos e canoas

Passaram já em passado não remoto

Barcas paquetes vapores de carga alvarengas

Rumo mares sem fronteiras

Com charque jaborandi tucum babaçu

Para Europa

América do Norte

América do Sul

E portos brasileiros.

5

Daqui do restaurante  “O Comilão” onde estou

E costumo estar aos domingos de tarde

À beira do Igaraçu como nesta hora

Há momento em que tiro os óculos

Sem tirar do que contemplo os olhos

E olho direto para a direita

A partir do início do que se avista das curvas

Além do cais

E aquém do mar

De Amarração

Trocando palavra de vez em quando

Com Ana Lúcia ao lado

Incrivelmente do mesmo lado o tempo inteiro

Lado esquerdo

Da cadeira

Em que senta

O poeta

Que brinda

Com o copo

De cerveja

Dele

Com o de uísque

Dela

E com a filha Diana

De frente

De costa

Frente para nós ambos

Que estamos defronte dela

Costa para o rio

Como o gosto dela

Durante boa parte da tarde de domingo em derredor da mesa

Cercada de fregueses que conversam em outras mesas

Com toalha prato garfo

Faca colher garrafa copo

Dose gelo taça isopor

Guardanapo palito cardápio

Azeite sal pimenta limão

Como em nossa mesa.

6

E sigo olhando cá comigo

E no movimento de pálpebras que pouco piscam

Os olhos ponho por sobre nariz e boca defronte

Com o verde que se espalha em frente

Da Ilha Grande de Santa Isabel

Por onde me ponho

A olhar para frente

Em frente de carnaubais

Onde tudo é verde e vasto

Do outro lado do rio

Largo verde pasto de boi.

7

Eis de repente firme forte vontade bate

De enxergar mais longe nesta mesma tarde

Do que enxergo das curvas fluviais do cais.

Contudo me contenho todo

E mais um pouco de cerveja boto no copo e tomo

Antes do almoço e do próximo gole

E contido no mármore de Carrara

De frio parnasiano poeta de outrora

Volto a olhar presente

Para onde há pouco estava olhando ainda agora

Palmeiras passos de boi pastando

Do outro lado do rio barrento.

8

Olho por ora agora

Para o lado esquerdo

De quem olha

Por entre olarias e chaminés

Rumo ponte Simplício Dias da Silva

Que atravessa o rio

E que não alcanço donde estou agora

Bem daqui do lado donde vejo o rio

E de tanto olhar para ali para lá

A vista retorna de pronto

E se fixa em novos velhos pontos de encontro

Com as curvas do Igaraçu.

9

Não porém por  fidelidade a essas curvas

Recomendo miremo-las ou admiremo-las.

Melhor que mirá-las ou admirá-las

É usar olhos

Com ou sem óculos

E ver

Como quem fotografa

Num dia de domingo de dia

Magro corpo frio morto

Estendido em esquina

Assassina de praça

Ver

Como quem grava

Suspiro grave de agonia breve

Em leito hospitalar

Ver

Como testemunha presencial

Gesto aureolado

Do que se atira em abismo espacial

E todo inteiro se espatifa quebrado

Em piso de concreto no chão

Ver

Com olhos azuis verdes violetas pretos castanhos

Como quem olha e vê

Olhar lânguido e doce de cão sem dono

Que dribla automóveis e motos

Com indefesos passos tortos

Em ruas do mundo todo

Por onde passam automóveis e motos

Ver enfim

Como quem fita

Fixamente

A realidade nua e crua

Como a que se estampa

Em semblante de habitante

De ponta de calçada de rua.

10

É por olhos que vêem

Ruas campos praças

Que vem

A tomada de consciência.

Se os olhos vêem

É porque não se cansam de olhar

Conscientemente

(nada vale olhar por olhar):

Olhar para frente e para trás

Com cuidado sempre

Para um lado e para outro

Sempre alerta e atento

Para o céu e para o chão

Sem perder de vista o ponto

Como quem olha para tudo

Em derredor dos olhos

Que de tanto olharem

E de tantos  olhares

Vêem até o invisível

Como se cegos fossem.

Exemplo: a poesia

– a poesia que mesmo invisível

Meus olhos vêem

Como uma coisa tão deslumbrante

Quanto o voo aleijado de pássaro.

Por isso mesmo

Porque assim olho e vejo

Não vejo como possa o leitor

Ver nos versos do poeta

Imagens que acalentem

Os amores impossíveis de João

Ou os sonhos langorosos de Maria

Ou as lágrimas saudosas de Clara Maria.

11

A natureza é bela muita bela

Mais bela que as pirâmides egipcíacas

Mais bela que as estátuas gregas e romanas

Mais bela que os arranha-céus de vidro

Mas não adianta cantá-la (basta vê-la):

Afinal de contas não será um poema

Antigo ou moderno

Que a tornará mais bela.

12

Como o vento venta

A chuva chove

O relâmpago relampeja

O dia amanhece

A noite anoitece

Assim também a vida vive

– vive e vomita

Coisas tão essenciais

Que é para elas

Que pálpebras

Devem se abrir

Para que abertas

Possam olhos atentos

Ver tudo

(ou não ver)

Como se vê

Neste poema.