O CEMITÉRIO

 

Vitor de Athayde Couto

– Adoro cemitério – assim falou Guirindó.

– O quê? Tedoidé?! – perguntou Loréu, o eterno bêbado maranhense.

– Calma bróder, se ligue no reggae! Tou falando é do cemitério da churrascaria de rodízio.

Ouvindo esse começo de diálogo lembrei um sonho adolescente. Eu estava com minha mãe, ouvindo os seus conselhos:

– Filho, se você precisar comer fora de casa, procure sempre se servir de uma comida que…

– Que comida, mãe? – interrompi.

– Uma comida assim, ó, você olha pra ela e já sabe o que é. Se não souber o que é, não coma!

Foi assim que minha mãe me ensinou. Desde aquele dia, nunca mais comi um troço chamado escondidinho. A gente nunca sabe o que está por baixo daquele reboco de parede. Se soubesse, o prato não se chamaria escondidinho haha.

Aos domingos, muitos brasileiros praticam liturgias de adoração em frente ao relicário da picanha, a churrasqueira. Nas crises, o churras migra do filé mignon ao filé de pescoço dianteiro, do frango-do-plano-real ao ovo, até o limite do desconhecido. No Brasil, o churras é tão sagrado que tem cemitério particular, quando a classe-média-subprime faz sua visita anual à churrascaria de rodízio.

O cemitério é um prato onde os clientes viscerais mais açodados depositam descartes de carnes duras e langanhos. Enquanto isso, os peões fantasiados de gaudérios exibem espetos com cortes meia-sola, bem passados e puxados no sal, para acalmar e amolecer os mais vorazes e velozes.

O ritual do rodízio contempla diferentes etapas. Com exceção dos verdadeiros consumidores gaúchos, que se protegem com capoeiras de radiche, agrião, rúcula… ah, e erva-mate no chimarrão, os demais preferem morrer logo na segunda etapa, passando direto para as carnes. Segredo importante: ao contrário dos vinhos, as primeiras carnes servidas em rodízios são as piores.

– Entendi – exclamou Loréu – as primeiras são sempre as de segunda.

– Sim, como quase tudo na vida – arrematei. Retomo esse tema adiante.

Lembrei do dia em que minha mãe entrevistou Marinalva, uma candidata a cozinheira lá pra casa.

– Mas eu não sei cozinhar, dona… dona… – hesitou Marinalva.

– Venúsia. Dona Venúsia! E o que você fazia no seu último emprego?

Marinalva ganhou confiança e começou a relatar com detalhes como era o seu dia-a-dia-noite-a-noite de trabalho na famosa “Churrascaria Lavoisier”. A visão da empresa é “desperdício zero”. Seu proprietário é Doutor Fulano, respeitável empresário inovador, formado em Química na renomada uniesquina nível A, curso reconhecido pelo MEC…dônaldis. Nem é preciso dizer que o empresário fez algum desses cursos de empreendedorismo que a grande mídia propagandeia todo dia. Pois foi lá que o doutor logo aprendeu, no dataxô, a diferença entre missão e visão da empresa. Quanto ao objetivo estratégico, ficou para a pós-graduação (pós, para os íntimos), a ser ministrada por outro consultor do Sul, altamente especializado, eu disse altamente?

– E a missão? – perguntou Loréu.

(próxima crônica: “A MISSÃO”)

COMENTÁRIO:

Antecipei este texto para um amigo. Ele foi logo afirmando que já tinha lido algum conto com este mesmo título: “O cemitério”. Rindo, eu lhe disse: mas duvido que seja o MEU cemitério de churrascaria de rodízio, haha. De fato, os cemitérios são muito recorrentes na literatura. Ninguém precisa mais escrever mais do mesmo, ou seja, cemitérios repletos de túmulos. Depois de “Grandes esperanças”, pra quê? Dickens começa sua narrativa num cemitério londrino. Pip, um menino órfão, visitava o túmulo de seus pais quando um fugitivo… Leitura imperdível.

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