– A tarde caía…

– Sem Eça, Vininha – disse Caymmi. – Chega de suaves milagres. A baianidade tá precisando mesmo é de trabalhos pesados, ops!, quer dizer, de milagres pesados.

– Se o Céu fosse bem redondinho como o planeta do Pequeno Príncipe, eu me posicionaria estrategicamente.

– Oxe, irmãozinho, pra quê?

– Para passar uma tar de em Itapuã / ao sol que ar de em Itapuã / ouvindo o marde Itapuã…

– Eita, mermão. Assim você desfaz a sua maior construção poética: “Passar uma tarde em Itapuã / ao sol que arde em Itapuã / ouvindo o mar de Itapuã…” Tarde, arde, mar de… ninguém nunca rimou tão bem assim. Duas palavras com uma!

– Ora, isso é só uma musiquinha. Achei um cantinho aqui no Céu, para curtir o meu deserto numa mesa de bar, com um uisquinho “por perto, porque você pode estar certo que vai chorar”. Obrigado, Pedrão! Pois é, meu irmãozinho Caymmi, São Pedro deixa a lâmpada acesa / Se algum dia a tristeza quiser entrar.

Depois de detonar um litro de mil mililitros, o poetinha já estava chamando Jesus de Jésu e cachorro de cacho. Chamou São Pedro e perguntou:

– Iaí, Pedrão! Cadê Deus? Quero ver Deus! Morri, tou no meu direito, rapá!

– Qual dos três? – perguntou Pedro.

– Homessa, meu santo! Lá na Terra, quando eu secava um litro, só enxergava dobrado. Mas, três? O mal é esse. Aqui no Céu tudo é batizado. Até uísque!

São Pedro sorriu, passou a mão nos cabelos brancos do poetinha, e perguntou se ele tinha esquecido.

– De quê?

– “Macho e fêmea os criou…”, lembra não?

– Claro, Pedrão. Estou bêbado mas não sou burro. Por que pergunta?

– Não sabia? Foi por isso que aceitei você aqui no Céu.

– Por causa d’O Dia da Criação?

– Sim, principalmente por estes versos: “Foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo / Mas por via das dúvidas livrai-nos, meu Deus, de todo mal”.

– Ora, escrevi isso aí de puro medo.

– Eu sei, meu filho. O Medo é nosso aliado.

– Não é mais o Diabo?

– Também. Mas o Diabo é muito radical. Não podemos contar só com ele para governar o Céu. Tivemos que apelar para o Medo. E o Medo está entre Deus e o Diabo. Bem no centrão. Agora, pode olhar. Deus está bem aí na sua frente.

– Mas eu estou vendo seis!

– Isso mesmo. Era pra ver só três: Pai, Filho e Espírito Santo – a Santíssima Trindade. Mas, como você está bêbado, vê tudo dobrado e multiplica por dois.  Dois vezes três… acaba vendo seis.

– Três em um é mais do que dialética. É trialética. Agora, seis! Parece até que o Céu foi invadido pelo marxismo multicultural. Não demora, o Céu vai acabar virando universidade pública.

– O que deseja, meu filho? – disse Deus.

– Quem é você? – perguntou o poetinha. – É o Pai, o Filho ou o Espírito Santo?

– Sou Jesus, o Cristo – disse Deus.

Nesse momento o poetinha mirou a Terra, lá em baixo. Percebendo o desmatamento da Amazônia e a poluição das águas doces e salgadas, dirigiu-se a Jesus, com a voz cambaleante:

– Jésu…

– Sim, amado filho – disse Jesus.

– Jésu… ô Jésu… escute, amigo / Se foi pra desfazer, por que é que fez?

 

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Escute o áudio com a narração do próprio autor: