Foto: Helder Fontenele

O tempo passa de gaivotas

José Galas

Para: Nego Jorge, Tânia, Zé Ribeiro, Izildinha… e a todos que se verão aqui.

Uma hora chega, maré de lua que espraia e delineia em outra linha d’agua o que o mar deixou.

Numa escrita incerta de espuma Uma leitura de ternura
Dos passos apagados de vento.

Sem plano algum fomos cruzando,
Justapondo, colando
Pedaços impensados, frutos da lua…

Somos essa praia branca
Escrita aleatória das ondas…
Linha de preamar que se reescreve
Em gravetos, algas mortas e plástico
Invólucro do vazio desse tempo.

(dito isso, faço de mim um mar,
e devolvo em maré de lua
retalhos de quem apenas aprendia
a remar.)

O tempo passa de gaivotas
Voo de ave marinha
Com seus mergulhos e danças
Como se dançava nos salões:
Os primeiros perfumes,
A carne ainda trêmula
De quem teme o corpo a corpo
O compasso, o laço de fita
E o não.

Bailarinos, rodopiávamos
Lívidos e identificados
Nos nossos longos braços adolescentes.
E elas, de olhares curiosos
Nos faziam crer cavalheiros
Colhendo rosas proibidas.

Como é bom ter nascido
Numa província, de sorte que do norte
Onde todos os olhares viam o mesmo
Rio em diferentes águas vermelhas
Seguindo para o mesmo mar
Por um leito sinuoso
Como as curvas que descobríamos.
Minha cidade é meu salão de festa
Minha infância, meu mergulho
Dos galhos que pendiam para o rio
Ou quintais de frutas maduras.
Com todos os defeitos é ela
A bela que me toma de fera
Invertendo os papéis no drama
Entre obséquios e silêncios.

Os atores, hoje, grisalhos.
Alguns arredondados, outros arredios
Alguns na linha, como sempre,
Outros como eu, vivendo o imponderável,
A distância encurtada de ser menino
Até a próxima maré.

Numa terra de coronéis, éramos
Os corsários, Negros Gatos,
Ingênuos até a alma, vivendo
Sobre os telhados de cada dia
Como se fosse chover.

Agora, já não importa.
Resta essa linha tênue de oceanos
Essa gratidão à terra, ao mar
Aos pais, aos amigos que navegaram
Em suas brigues de ventos e sonhos
Com suas princesas em rendas e laquês.

Como a escrita da lei rompemos o
Cordão, fomos ser gente em terra
Alheia. Olhando de soslaio fomos
Balaios desenterrando pratas escondidas.
Alguns trouxeram anéis, outros, sequer
Voltaram, muitos sequer saíram.

Quando a tarde se esvazia de intensidade
E por algum motivo somos apanhados
De solidão, o sol é um nativo que doma o fogo
E faz das águas a casa do sossego.
Por ela navegam pequenos barcos indiferentes
Com suas bandeiras de papel de seda.

Na estação da saudade
O rio ganha força
Para um abraço.