O ÚLTIMO DOS ENGRAXATES

 

Vitor de Athayde Couto

A praça da Sé é a melhor escola de Parnásia. Escola da vida. Sim, aquela que nunca dá férias. Os engraxates são os seus melhores professores. Ensinam tudo aquilo que é relacionado com o mundo real. Tudo de importante que uma criança precisa saber: como trocar figurinhas, revistas em quadrinhos, pedaços de filme, flâmulas, estampas, calendários de bolso… Ensinam também como vender frutas, jornais velhos, latas, garrafas vazias e outras utilidades anteriores ao mundo dos plásticos. Todo mundo coleciona tampinhas de câmaras de ar, botões, chaveiros, selos…

 

Os engraxates mais velhos e experientes ocupam os melhores pontos, com suas cadeiras confortáveis. Os jovens aprendizes só dispõem de uma caixa com portapé, além de um banquinho minúsculo. Quando não acha lugar no banco da praça, o freguês é forçado a ficar de pé durante a graxa. Esta é a principal razão do menor preço cobrado pelos aprendizes. Para fazer rolar uma gorjeta, o aprendiz batuca com a flanela úmida de álcool contra o couro do sapato. Terminada a operação, dá duas batidinhas na caixa, com a escova.

 

Por precaução, os aprendizes usam pedaços de couro ou papelão para proteger as meias dos fregueses.

 

Todos trabalhavam à sombra de velhas figueiras, até o dia em que a praça foi atacada por milhões de lacerdinhas. O ataque forçou todo mundo a se mudar pra debaixo dos oitizeiros, na outra extremidade. Ali permaneceram até o dia em que a praça foi novamente atacada. Desta vez, por uma praga de pardais que cagam na cabeça dos fregueses e emitem chiados que lembram rodas mecânicas em operação. E sem graxa. Depois dos lacerdinhas e pardais, tudo se acabou no dia em que a cidade foi atacada pela terceira praga: milhares de pares de tênis descartáveis. Com eles os engraxates também foram descartados. Fogoió é o último dos engraxates da praça da Sé. Ele sobreviveu à quarta praga, a destruição da praça, graças às suas histórias interessantes. Graças também aos últimos sapatos de vaqueta e cromo alemão que protegem os pés dos penúltimos idosos aposentados do serviço público.

 

Sem figueiras nem oitizeiros na praça, Fogoió acomoda o freguês sob um sombreiro remendado que achou no lixo de um restaurante na praia. Enquanto trabalha, conversa com o freguês:

 

– Sabe o ceguim?

 

– Qual? – perguntou o freguês.

 

– Aquele.

 

– Aquele qual?

 

– Aquele ali, ó, no meio da praça… Aquele que nunca usa a pista tátil.

 

– Diabéisso?

 

– São esses caminhos aí, ó. Pros cegos andarem por cima.

 

– E por que ele não usa?

 

– Porque tá fora do roteiro dele. Fizeram isso aí sem pesquisar antes quantos cegos costumam atravessar a praça e por onde caminham. Não adianta ter tanta faculdade, se elas não ensinam nada. Bastava observar e demarcar os caminhos. É assim que procedem as famílias americanas. Quando se mudam para uma casa nova, deixam pra fazer o jardim por último. As pessoas entram e saem da casa, para o trabalho, escola… Passados alguns dias, aparecem as pegadas dos adultos, das crianças… Só depois é que a família instala o jardim e os caminhos por entre a grama, na melhor localização possível. Não tem como dar errado. As peças (pedras, lajes, cerâmicas) são colocadas por cima das marcas deixadas pelas pessoas. Nenhum planejador, sozinho, faz melhor. Fazer de qualquer jeito, até que fazem. Mas fazem tão ruim que os deficientes visuais vão sempre procurar um caminho diferente do projetado. Vão escolher outro caminho. O seu caminho. Aqui na praça da Sé, ninguém nunca procurou saber. Ninguém respeitou o caminho do ceguim. A pista tátil vai por um lado, o ceguim vai por outro. Mas, não tenha dúvida, alguém ganhou dinheiro com isso porque…

 

– Ah, já sei! Tu tá falando do ceguim que chamam de Ceguim?

 

– Sim, ele mesmo.

 

– O que é que tem?

 

– Anda rindo à toa.

 

– Por quê? Recebeu algum auxílio emergencial?

 

– Também. Mas a principal razão é outra.

 

– Qual?

 

– Botaram ele num curso de alfabetização em Braille. Mas é um curso só de leitura, por falta de regletes.

 

– Diabéisso?

 

– Oxi, é o instrumento de escrita tátil, criado pelo cego francês Louis Braille. Aquele, sim, era um homem de visão, haha.

 

– E daí?

 

– Daí o Ceguim anda rindo à toa.

 

– Sim, isso tu já disse, mas… por quê?

 

– Bem… é que ele aprendeu a ler com as mãos.

 

– Virou cigano?

 

– Não. Não estou falando de ler as mãos. É ler COM as mãos. Ele agora…

 

– ?

 

– Ele agora… depois que aprendeu a ler com a ponta dos dedos, só quer ficar com mulher se ela tiver muita celulite.