OS VAGALUMES DE OURO PRETO
Vitor de Athayde Couto
A garotinha ganhou moedas da avó. Tomou banho, aprontou-se e foi até a quitanda comprar mariola. O quitandeiro fingiu desconhecer o doce e insistiu:
– Menina, eu já te disse que aqui não é mais quitanda. É delicatessen!
A garotinha voltou pra casa, saltitante e feliz, sob o sol quente que derretia na sua mão os m&m’s pintados com tintas artificiais de todas as cores.
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O pipoqueiro da pracinha vendeu o seu carrinho pro ferro-velho. Com o dinheiro, comprou um ingresso pro cinema do shopping. Mas o troco não deu pra pipoca gurmê. Todo mundo adora shopping, é mais seguro contra ladrões.
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Hoje eu tive uma grande revelação: não vai chover em setembro.
Revelações dispensam o conhecimento. Inútil ler. Inútil estudar. Deus não tem tempo pra escrever textões com linhas tortas nem certas. Ele só manda áudios com fundo sonoro de trovões e raios fractais-estroboscópicos.
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No restaurante japonês, o cliente solitário pediu gengibre pra acompanhar o sashimi. Todos em volta olharam pra ele e lamentaram a sua ignorância.
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Está escrito na placa (outdoor, em parnasianês) do estabelecimento comercial “Garapeira O Chaga”:
NÃO FAZEMOS ENTREGA PORÉM DELIVERY
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Na sua robusta coxa grossa e cheia de varizes, Alaíde quebrou o último disco do Waldick Soriano. Rompida com o triste passado, ela agora só ouve Dua Lipa, entre nervosos tiks e não me toks.
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Ao receber o primeiro cliente da noite ela foi logo avisando:
– Não sou puta, sou escortiguéu. Nem me chamo Alaíde. Meu nome é Samara.
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O netinho inocente pro avô com Alzheimer:
– Vovô, vamos brincar de jogo da memória?
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Burros urbanos calçam ferraduras pra puxar carroças. No escuro da noite, o choque do ferro com as pedras polidas do calçamento histórico da praça espalha milhares de vagalumes.
Um dia, o empreiteiro esperto cobriu o velho calçamento com o manto infernal do asfalto. A praça ficou às escuras. Naquele mesmo dia todos os vagalumes voaram pra cidade de Ouro Preto.
COMENTÁRIO:
Publicada neste blog em 08/07/2022, a crônica “Capitão Rocha e o pandeiro perfeito” (ouça ou leia aqui) inspirou uma leitora lá no Rio de Janeiro. Ela fez o belíssimo bordado “Que tal um samba?” (ouça aqui) que será entregue como lembrança sublime à Dona Lucidalva, viúva do saudoso João.
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Escute o texto narrado pelo próprio autor:
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