QUEM É VOCÊ?
Vitor de Athayde Couto
Na juventude amaram-se intensamente. Anos depois, separados pelo desamor, prosseguem suas vidas contraditórias de sentido.
Cabelos brancos, manchas na pele já enrugada e dor nas juntas são tratados com inovações dispendiosas. De um leve martelinho nos joelhos, a ciência evolui para radiações, tomografias e ultrassons.
Os dois ex-amantes sobrevivem ao tempo. Com o que ainda lhes resta de memória, continuam comunicando-se, porém não mais intensamente. Do bitnet na tela verde, evoluem para e-mails pontogovs; depois, pontocoms, até o pontofinal, no whatsapp, onde ainda paira alguma lembrança que os faz trocar repetidas mensagens nas datas comemorativas de ano novo, casamento, páscoa, Natal e, principalmente, dos respectivos aniversários.
Com o tempo, as memórias vão se apagando no que resta dos cérebros já desgastados, enquanto esmaecem as fotos do velho álbum de família desfeita. Lentamente as datas escapolem da memória biológica.
Pela ordem, vão esquecendo as datas do casamento, depois, do divórcio, os dias de Natal, ano novo, páscoa, até restar somente a lembrança dos seus aniversários, pois ambos nasceram no mesmo dia. Das raras mensagens, cada ano mais curtas, resta uma só palavra: “parabéns!”. Quase terminais, as suas memórias biológicas já se revelam inúteis. Para felicidade dos laboratórios, os efeitos colaterais dos remédios só se manifestam no orçamento e no bolso.
Certo dia, seus caminhos se cruzam no aeroporto, cada um na sua cadeira de rodas conduzida pelo funcionário da companhia aérea. Aproximando-se, eles se entreolham quando os dois funcionários param e trocam informações. Entreolhando-se mais uma vez, sem nenhuma emoção aparente, ambos fazem um ao outro esta mesma pergunta:
“Quem é você?”
Indiferentes ao que acontece, os funcionários se despedem:
“Bora que o embarque já tá encerrando” – e empurram, cada um, a cadeira de rodas do seu respectivo cliente, rumo a dois diferentes portões.
Feito o embarque preferencial, os ex-amantes decolam e se distanciam um do outro, voando até o infinito, furando as nuvens do destino.
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