SÓ TEM ARTISTA 

 

Vitor de Athayde Couto

 

Em Parnásia, até hoje circula uma velha piada besta, perdida no tempo. Mas Fogoió deve se lembrar.

 

– Qual é a piada? – perguntou Fogoió.

 

– Aquela do filme de caubói – respondi.

 

– Ah, mas é uma piada besta mesmo, tão sem graça hoje em dia…

 

– Tudo bem, mas, conta assim mesmo!

 

– Ora, que besteira. É que diziam…

 

– Quem dizia? – Interrompi, para a piada besta ficar ainda mais sem graça.

 

– Arnegradinha – afirmou Fogoió, lembrando que, naquele tempo, negrada ou negradinha não tinha nenhuma conotação racista. – Negrada era como os culumins parnasianos se referiam a eles mesmos. É o que se chama hoje de galera. Se alguém não gostava, respondia “negrada é marimbondo!” E eu? Me botaram esse apelido, Fogoió, só porque meu cabelo parece fogo. Pior acontece com essas culuminhas ruivas, coitadas. Elas passam do outro lado da rua e arnegradinha ficam gritando “ei, formiga-de-fogo! ei, inferno na torre!”. Resumindo, é muito complicado e desagradável ser diferente.

 

– Dizem que o emprego do termo galera começou na torcida do Flamengo, cujo símbolo é o urubu, ave de cor preta. O Pasquim, com toda a sua vanguarda, chamava a torcida do Flamengo de crioléu. Mas foi Jorge ex-Ben, atual Benjor, em respeito à numerologia, o responsável pela divulgação de galera, na música “Fio Maravilha”. Embora não revele conotação de cor, galera tampouco resolve a questão que, no limite, ainda contém resquícios históricos de racismo.

 

– Por quê?

 

– Repare. Na antiguidade, galera era o time de escravos que remavam no porão das galeras. Nas guerras, morriam feito formigas. E não eram só pretos. Eram escravos de todas as cores, recrutados entre os vencidos nas batalhas. Hoje, no Brasil, o cidadão indignado condena mentalmente qualquer político ladrão, assim: “manda pra Bangu!”. Os juízes romanos condenavam os criminosos e sentenciavam: “para as galeras!”.

 

Voltando à piada…

 

– Então… diziam que uma grande empresa cinematográfica americana mandou uma equipe pra fazer um filme em Parnásia.

 

– Verdade? E como é o nome do filme?

 

– Ninguém sabe, pois o filme nunca foi feito.

 

– E por quê?

 

– Porque era pra ser um filme de caubói, mas em Parnásia só tem artista. Ninguém queria fazer o papel de bandido. Foi o que disseram. Esta é a piada.

 

– Êrrrlll… gngngn…

 

– Que foi? Não gostou?

 

– Não, mas… quem disse? Arnegradinha?

 

– Sim, sim. E diziam mais.

 

– O quê?

 

– Sabe esses caras estranhos?

 

– Estranhos, como?

 

– Assim…

 

– ?

 

– Esses caras que param a gente bem no meio da calçada, atrapalhando a passagem das pessoas. Falam sem parar. Nem respiram, rapá! Sempre sonhadores, parecem viver numa realidade paralela. O aluguel da nossa paciência demora, até chegar um conhecido e comentar: “esse cara é um poeta”, com aquela mesma entonação de quem diz “fulano é um artista”. O conhecido que chega é a salvação, pra gente se livrar, haha.

 

– Olha, não achei graça. Eu também faço cá minhas poesias…

 

– Tá, discupaê – disse Fogoió.

 

– E tem mais, qual a utilidade desse tipo de informação?

 

– Pense um pouco – continuou Fogoió, muito sério. – Eu sempre fui muito invocado, querendo entender por que Parnásia detém a maior densidade vategráfica do Brasil, segundo o IBGE.

 

– Diabéisso?

 

– Repare. Vate é poeta, né?

 

– Sim.

 

– Então, densidade vategráfica só pode ser a quantidade de poetas por metro quadrado.

 

– Ah, entendi. Quer dizer que, além de poetas, Parnásia tem também muitos demônios por metro quadrado.

 

– Por quê?

 

– Porque, segundo o IBGE, quando comparada aos municípios vizinhos, Parnásia ostenta a maior densidade demográfica da região.

 

– É… faz sentido. E cornográfica também, haha. Mas, vai chamar de corno, vai. Tu vai ver a confusão que dá. Pode chamar até de mentiroso, desonesto, ladrão… Pode chamar do que quiser. Só num chame de corno. Dá certo não.