A MORTE DAS PROFISSÕES

Vitor de Athayde Couto

Eu pensava que no mundo tinha mais mentiroso do que doido. Não sei se é
metade-metade, mas… como tem doido! Imagine o sonho de um doido. Sonho
já é uma coisa doida, né? Agora, imagine um doido sonhando um sonho mais
doido do que ele.

O PRIMEIRO SONHO
Certa noite, o doido sonhou com a Morte e descobriu que ela também é muito
doida. No sonho, a Morte ofereceu-lhe carona numa bicicleta equipada com
cadeira de dentista, camisa de força e cinto de segurança. Apoiado na sua fé
inabalável e no vigoroso medo de morrer, o doido não aceitou a carona, mas
comprometeu-se a construir uma igreja num lugar onde não existe nenhuma
igreja. Essa é a parte mais difícil: que lugar é esse? Onde encontrar uma
comunidade, por menor que seja, em que não exista uma única igreja?

O “GNÔMIO” E O DEMÔNIO
Felizmente o doido sonhou outra vez. No segundo sonho, o demônio propôs
trocar a alma do doido pela revelação de um lugar sem igreja, onde as pessoas
praticam a sua fé em casa mesmo. Esse ritual só é encontrado nas novas
religiões. Pra variar, tudo começou na Califórnia, onde recebeu o nome de
home office delivery faith ou fé artesanal feita à mão e em casa, em tradução
doida. Fechado o acordo, o doido recebeu, das mãos de um “gnômio”, um
mapa onde o demônio definiu a sua zona de processamento de religiões.
Escolhido o lote, o doido construiu a Igreja Poligonal dos Santos Algoritmos e
da Taxa de Juros Reais Elevados a Deus.

O PRIMEIRO ENCONTRO COM A MORTE
Morrer é ser feliz, porque você nunca vai saber que o seu nome foi deletado da
lista de contatos. É não seguir nem ser seguido no insta. É não ser nem ter
mais amigos no face. Em resumo, é nunca mais ser. Nem estar. Se eu não
sou, o tempo não existe. Se não estou, é o espaço que não existe.

O SEGUNDO ENCONTRO COM A MORTE
Antigamente, quando morríamos, restava-nos um consolo: o carteiro precisava
de muitos anos para nos esquecer. Mas já não se fazem mais carteiros como
antigamente. Nem cartas. Depois que morremos seremos sempre lembrados.
As faturas do cartão, as contas a pagar e os boletos continuarão chegando por
muitos e muitos anos.

A MORTE DAS PROFISSÕES
Das profissões em extinção, a primeira não será a dos carteiros. Será a dos
poetas, seresteiros, namorados, e também dos escritores de cartas de amor.
Porque tudo já foi devidamente poetado. Não há mais o que escrever. A
redondilha deu lugar à redundância, ao mais-do-mesmo. É como na música.
Não sendo possível criar mais nenhuma música nova, resta-nos aguardar
ansiosamente a revolução dodecafônica 2.0, com 24 notas sem repetição. O
som que se ouve hoje em dia (que as pessoas chamam de música) já se

repete logo na segunda nota. Assim, só nos resta uma saída: que os Beatles
voltem a cantar “Help!”.

Caro leitor
Você também pode ouvir este texto, assistindo ao vídeo no canal YouTube do
autor. Clique aqui ou anote o endereço:
https://www.youtube.com/@salvadorpinho