ABDELSLAM

 

Vitor de Athayde Couto

 

Nos anos 1970, conheci Abdelslam, através de sua esposa, Agnès, minha amiga. Ela havia feito pesquisa de campo, na Bahia, para uma tese de doutorado. Lembro que seu tema tinha algo a ver com o mar na obra de Jorge Amado. Formada em Letras, Agnès revisava meus trabalhos em francês. Em contrapartida, eu lhe contava histórias incríveis sobre os candomblés da Parnasia. Sempre do meu jeito. Para tirar dúvidas, nos fins de semana, eu e meu namorado pegávamos o RER e íamos até sua casa, em Orly.

 

Dona Sarah, mãe de Abdelslam, morava em Fez. Muito religiosa, sentia-se no dever de dar comida a um mendigo, toda vez que ele batia à sua porta. Se não tivesse comida ou mesmo por uma simples demora no servir, o mendigo aprontava um escândalo. Atirava-se ao chão, simulando um ataque epiléptico, e, aos gritos, pedia um exemplar do Corão. “Alquran! Alquran! Wallah! Wallah!”, gritava o mendigo. Colocando-se o livro sagrado sobre o seu coração ele ficava curado. Instantaneamente. Até hoje os moradores daquela medina acreditam que Alá opera no mendigo um verdadeiro milagre, para agrado dos sacerdotes e do cofre da mesquita mais antiga do Marrocos.

 

Youssef, irmão de Abdelslam, voltava do colégio, com um grupo de colegas da mesma medina. Entre eles, estavam Ali, Rachid, Muhamad e Fatima, sempre gaiatos. Ao se deparar com a cena, na porta de sua casa, Youssef rapidamente colocou um livro sobre o peito do mendigo. O homem levantou-se, curado, e foi logo exigir o prato de comida, “por ordem de Alá!”, como ele costumava gritar. De longe, os estudantes também gritavam, para todos os vizinhos ouvirem: “É um livro de Física, é um livro de Física, não é o Corão!”. E riam às gargalhadas.

 

Desmascarado, o mendigo praguejou e nunca mais voltou àquela medina. Mesmo assim, Dona Sarah lamentou o ocorrido. Até hoje ela acredita que era Alá quem curava o mendigo, através do exemplar do sagrado Corão. Aliás, podia ser qualquer livro. Na sua simplicidade, ela também acredita que basta ser livro para conter a verdade. Nada a ver com nada.

 

Em Parnasia não é diferente. Muita gente acredita no que dizem os livros. Qualquer livro. Desprezam a crítica, só praticam leitura inocente. Atualmente, com as facilidades da telemática, qualquer pessoa publica qualquer coisa. Uma vez publicada em livro, essa coisa qualquer passa a ser verdade. A difusão é imediata entre os incautos, para quem todo livro é sagrado. Assim como na Índia, onde todas as vacas são sagradas… ops! todas, não. As melhores vacas são escolhidas e exportadas para o Brasil, Austrália, Colômbia… onde os fazendeiros fazem seleção de gado indiano. Enquanto isso, os indianos exportadores enriquecem. Nunca dispensam um bom churrasco. E engordam. Afinal, é na Índia que se abre o maior número de lojas de cadeias fast-food, devido ao crescente mercado ávido por hambúrgueres.

 

A renda e a banha continuarão fortemente concentradas enquanto fundamentalistas religiosos mantiverem o controle daquela imensa população na condição de vegetariana e pacífica. No Brasil não é diferente. Não temos castas indianas, mas nossos fundamentalistas são melhores. Como recompensa pelo controle social, eles acaparam dízimos, além de outras benesses do erário, como isenção de impostos. Diretamente da sua estação espacial, Deus observa e anota tudo no seu tablet. Tudo está salvo na nuvem, ou não me chamo Mani.

 

COMENTÁRIOS DE VÁRIOS LEITORES:

 

– Onde fica Parnasia? Na Grécia?

 

– Quem é Mani?

 

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Escute o texto com a narração do próprio autor: