AMANTEIGADO

 

Vitor de Athayde Couto

 

Quando estudei na UFRGS (os gaúchos pronunciam úrguis, puxando pelo erre), eventualmente almoçava na cantina, quando queria variar o rango do RU. A cantina do seu Petrônio ficava no andar térreo da Faculdade de Economia, no limite do belíssimo Parque Redenção. Ao lado da caixa registradora, seu Petrônio exibia um Saci, símbolo do Internacional. Ele só falava de futebol. Assim que me via, começava logo a inticar com o Esporte Clube Bahia. Acho até que, para compensar, após o almoço ele me presenteava com um delicioso tablete de doce de leite “Mu-Mu”, quase tão bom quanto o dos vizinhos hermanos argentinos. Como o leitor já deve ter deduzido, a marca “Mu-Mu” foi inspirada no mugido do gado.

 

Já em Salvador, fiquei viciado nos sequilhos baianos de Rio Real, únicos concorrentes à altura do sabor das quitandas mineiras. Quitandas, em Minas, não são estabelecimentos comerciais. São iguarias caseiras, geralmente feitas à base de farinhas, onde o polvilho reina. Entre as iguarias, os sequilhos. Entre os sequilhos, os amanteigados divinos, principalmente os do Triângulo Mineiro.

 

Voltando à Parnaíba, meu coração acelerou quando vi, numa padaria, um potinho onde se lia: “amanteigado”. Corri para pegar logo uns três, antes que alguém levasse tudo. O problema é que eu me acostumei a querer saber o que ponho na boca. Daí a mania de ler prazo de validade e ingredientes. O primeiro ingrediente era margarina. Como o leitor sabe, na composição dos alimentos, o primeiro ingrediente é aquele que pesa mais no produto – ou que se encontra presente em maior quantidade.

 

O primeiro impulso foi devolver imediatamente aquele bregueço à prateleira. Todavia, continuei lendo, na expectativa de encontrar manteiga, nem que fosse no final da relação. Mas, quá, “manteiga” era só no nome haha.

 

Conversando com o dono da padaria – onde costumo comprar baldes de margarina, vazios, que uso para carregar frutas, água e terra vegetal – ele me garantiu que o sequilho era feito com “margarina da melhor qualidade”.

 

Agradeci e toquei minha vidinha, lembrando os bons momentos vividos. Lembrei das quitandas mineiras com que uma colega da FAO me presenteava, do doce “Mu-Mu”, de nome sugestivo e honesto. Lembrei até dos biscoitos “não-me-toques” que a tia Zizi me oferecia com licor de pitanga, na Tutoia Velha, Maranhão. O nome dos biscoitos remete à sua delicadeza. Esculpidos com ajuda de um garfo, são arrumados um a um, com o maior cuidado para que não se quebrem.

 

Com um biscoito derretendo na boca, de olhos fechados, eu parecia ouvir Zequinha de Abreu, no velho Pleyel da tia Noquinha, quando a Luze tocava com muita alegria o maxixe “Não me toques”, geralmente apresentado como chorinho, o jazz brasileiro. Tocar “Não me toques” era um grande desafio, pois exigia muita habilidade ao piano.

 

Comentando com um amigo, também parnaibano, ele riu e disse que o nome do bregueço não devia ser amanteigado, e, sim, “margarinado”. Mas, como o brasileiro é pouco exigente e quase nunca reclama de nada (nem eu, depois que aprendi com minha filha a deixar os outros serem felizes), fiquei pensando que o nome do bregueço bem que podia ser “amantei…gado”.

 

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Escute o texto com a narração do próprio autor: