Vitor de Athayde Couto

 

No dia seguinte, o zelador terceirizado, de posse de todas as chaves da delegacia, amanhece abrindo as portas dos gabinetes. Faz a limpeza. Reabastece os sanitários com papel higiênico. Verifica o nível da água mineral, do álcool em gel. De tudo, enfim. Daí começa a fazer o cafezinho, que é também o seu café matinal, acompanhado de um pão donzelo. Senta-se à mesa. Agradecido, faz uma oração.

 

Desde a madrugada já se formava uma fila de cidadãos contribuintes na calçada.

 

Aos poucos vão chegando os jogadores de dominó. São os funcionários concursados mais assíduos, mas só começam o trabalho depois de jogada a última partida.

 

A fila aumenta. Resignados, os cidadãos contribuintes esperam algum atendimento. O entregador de senhas não aparece. Ninguém reclama. Uma criança de colo chora. Um idoso tosse e todos olham para ele. A velhinha preta conta a sua história. Prenderam o seu neto de 16 anos. Disseram que ele estava na delegacia desde ontem à noite, porque furtou um pedaço de queijo.

 

Logo na entrada encontra-se um aviso feito no computador, com letras gigantescas. Devem ter gastado toda a tinta da impressora. Aqueles que sabem ler traduzem para os cidadãos contribuintes que não sabem:

 “DESACATAR FUNCIONÁRIO PÚBLICO NO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO… PENA: DETENÇÃO DE 6 MESES A 2 ANOS… Art. 331 do Código Penal”.

 

Não se vê nenhum aviso informando o que é abuso de autoridade. Nem sobre atrasos no atendimento ou qualidade do serviço. Resta apenas um velho pôster, esquecido no chão, onde se lia antigamente: “Nosso objetivo” e “Nossa missão”.

 

No pátio, o dominó domina. Só se ouvem as fortes pancadas do acrílico nos tabuleiros.

 

Começa uma chuva torrencial e forte. O zelador terceirizado se compadece. Abre um portão. As pessoas invadem o pátio feito gado. A fila se desfaz. Os mais espertos vão para a frente da nova fila que se forma em desordem. No fim da fila ficaram a mãe com a criança de colo. Molhada de chuva, a criança chora mais alto. E tosse. Como também tosse o idoso ao seu lado.

 

O zelador terceirizado resolve ele mesmo entregar as senhas. Glória a deus, aleluia, diz a maioria dos cidadãos contribuintes. Cumprindo o protocolo, ele vai até o fim da fila e entrega senhas preferenciais para o idoso, para a velhinha preta, e para a mãe com a criança no colo com marcas de violência à mostra.

 

Por algum mistério da burocracia, as senhas preferenciais nunca são chamadas em primeiro lugar. Por que será? Eis aí um bom tema para Trabalho de Conclusão de Curso. São tantos cursos superiores que já falta tema para TCC.

 

Bem-vinda chuva que caiu do céu e desfez o dominó no pátio. E molhou a criança de colo. Começa o lento atendimento, mas, estranhamente, a fila não se mexe.

 

Sentado na sua cadeira ergonômica, o dotô delegado começa a ler o jornal “Correio da Morte”. Concentra-se nas notícias de acidentes de trânsito com vítimas fatais, assaltos e violência doméstica. Mas o que chama sua atenção é a seguinte manchete:

 

“Candidato à suprema corte resolve aderir ao Lattes”.

 

Curioso, vai ao gúgli procurar saber quem é esse tal de Lattes.

 

(Continua)