DESCULPEM, MAS SE MORRE

 

Vitor de Athayde Couto

 

Sabe, esses motoristas de aplicativo que ficam puxando conversa? Com raras exceções, são tão uberchatos que o próprio aplicativo disponibiliza escolhas e avaliações. Entre os itens avaliados tem um que se refere justamente à conversa do motorista, se é agradável ou não. Cheguei a rir quando descobri no aplicativo que o passageiro pode escolher um motorista que permanece calado enquanto dirige.

 

O motorista queria me convencer a ler um livro. Trata-se da alegoria de um pastor protestante, só porque era “o livro mais vendido no mundo depois da bíblia”. Existem muitos livros “mais vendidos depois da bíblia”. Mas, peraí… que bíblia? São tantas… Para minha surpresa, descobri que esses rankings de livros mais vendidos depois da bíblia desconhecem a existência de chineses, indianos, paquistaneses… que se contam na base do bilhão. E compram e leem livros. E assistem a muitos filmes. A bilheteria da indústria cinematográfica americana, com todos os seus lixos, não supera Boliúde.

 

Agora, pense no Brasil e responda: qual é o autor brasileiro mais traduzido?

 

Alguns diriam Machado de Assis. Outros, Jorge Amado. Os mais atualizados e ligados à mídia não hesitariam: é Paulo Coelho, claro.

 

Erramos, todos. Ninguém quer mais saber se ela traiu ou não traiu, seja um ou dois maridos. Hoje,em vez de Alquimia, o mundo pede vacinas.

 

Caso a página que eu li na internet não seja podre, quem mais teve traduções foi ninguém menos do que Clarice, nascida Chaya Pinkhasovna Lispector.

 

A força de Clarice Lispector está no gênero crônicas. Burocratas literários metidos a críticos e outros líterochatos logo sentenciam: “crônica é um gênero literário menor”. E devem continuar alternando no pódio os Machados, Amados e Coelhos.

 

Eu, não. Independentemente da qualidade dos rankings e da podreira das páginas da internet, presto aqui minha homenagem a Clarice. Hoje, 10 de dezembro, ela completaria 100 anos de nascida. O Brasil, invisível para muitos brasileiros, está de parabéns. Lá fora, o Brasil ainda é visível e lembrado. Clarice também. Merece destaque a criação da biblioteca sonora da Universidade de Princeton (EUA): “Clarice 100 Ears”. One hundred ears, haha. Confesso que há muito tempo não via um trocadilho tão porreta.

 

A anti Clarice é só verborreia. Em geral, são textos longos, escritos em uma espécie de juridiquês barroco, que lembram petições de cartórios. Senão, são fac símiles extraídos de supostos “registros históricos”, arquivados em livros enormes, com cheiro de naftalina. Línguas mortas encaixotadas em arquivos igualmente mortos.

 

Cada frase cartorial, que nunca tem menos de dez linhas contínuas, é recheado com um ror de apostos e mesóclises à “la” Michel Temer. E vírgulas. Muitas vírgulas. Esses autodeclarados escritores não são capazes de compreender Clarice. Na “Insônia infeliz e feliz”, ela chega a escrever várias frases de uma palavra só. Como o genial João Gilberto, ela alterna palavras e pontos. Por exemplo: “…solidão. Ler? Jamais. Escrever? Jamais.” E pensar que ela já escrevia assim em meados do século passado, completamente livre do estilo cartorial.

 

Linda mãe dedicada aos filhos de nomes simples: Pedro e Paulo. Depois deles, pela ordem, a humanidade inteira. Na crônica “Do modo como não se quer bondade” deixa um recado aos pretensos imortais: “Desculpem, mas se morre”.