ELIZIÁRIO
Vitor de Athayde Couto
Todo dia 6 de janeiro, dia de Reis, os músicos vinham tocar na minha calçada e de todos os lares brasileiros que tinham calçada. Sim, já existiu um Brasil repleto de lares, calçadas, cadeiras de balanço, famílias, modinhas e músicos. Artistas talentosos e de expressão, os músicos nunca se importavam ao serem chamados simplesmente de tocadores.
– “Mamãe, os tocadores chegaram!” Assim, milhares de crianças, emocionadas, anunciavam os Reis, tão magos na musicalidade, quanto magros na elegância. De porta em porta, eles mantinham a tradição daquele dia sagrado. Ao contrário dos boieiros, brincantes e catrevages, que sempre exigiam cachaça, ofereciam-se: água do rio limpo ou refresco de fruta do quintal, merendas, e eventualmente alguns trocados. Mas, sobretudo, oferecia-se o que havia de mais importante para que a boa música fluísse: silêncio e atenção.
Não existem mais Reis magos, nem rei da voz, nem do baião.
Sequer existem audições, com educação musical de ouvintes.
Na monoanarquia brasileira predominam celebridades e famosidades que garantem o ganha-pão da imprensa. Novos tempos, novos reis: do futebol, do gado, da soja, do tráfico, dos cedês que vendem pra mais de milhão… Sem falar nas rainhas-marias-chuteiras, das embaixadinhas, da piriguetagem, da bateria, da motossera, do funk ostentação, e até rainha da cocada preta! Nada mau para um País que começou com carlotas joaquinas.
Francisco Eliziário Lopes Ferreira escolheu o dia de Reis para se despedir dos amigos. Calou-se para sempre o crooner dos Piratas do Ritmo, célebre conjunto musical que animou os bailes do Cassino, da AABB, do Igara Club e de outros espaços privados como a Casa Inglesa.
Chico Eliziário, como era mais conhecido, foi sem dúvida o Rei da voz parnaibana. Mais do que músico, era considerado maestro, ou mestre, por todos aqueles tocadores que sempre se reuniam na sua varanda. Contrabaixista titular dos “Piratas”, era também violonista, como seu irmão, Raimundo.
Tive o privilégio de desfrutar da varanda de Eliziário nas manhãs de domingo, quando seus amigos reuniam-se para tocar e cantar. Mesmo depois de sofrer um AVC, quando já não mais podia tocar violão, Eliziário continuou cantando com perfeição. Dominava tão bem a divisão melódica que, não raro, os acompanhantes vacilavam. Praticando contínuas síncopes musicais, Eliziário parecia divertir-se muito ao perceber as dificuldades experimentadas pelos tocadores. Entre os seus hits destacavam-se: Carinhoso, Nada além, Renúncia, Nega manhosa e Baiana. Só de vez em quando cantava o seu Beguine, por ser um ritmo pouco conhecido, portanto, mais difícil.
Perguntei onde ele aprendeu a cantar tão bem assim. Respondeu-me que foi graças a um radinho que ficava sempre ligado, sobre a mesa de costura, enquanto ele pespontava os ternos de linho e tropical inglês que, mais tarde, freqüentariam os salões da elite parnaibana. Ele próprio não ficava atrás. Elegante, fazia o caminho de casa (esquina das ruas Ademar Neves com Florindo de Castro) ao trabalho (rua Duque de Caxias), sempre usando ternos confeccionados com a mesma perfeição que dedicava aos clientes e à música. Sapatos de duas cores e um chapéu panamá completavam o figurino. A sua alfaiataria ficava pertinho da barbearia e lavanderia do Anastácio, líder dos Piratas.
Mas Eliziário gostava mesmo era de ouvir o cantor Orlando Silva. “Aprendi muito com ele”, completou.
– E por quê “Piratas”? – perguntei, lembrando que nos anos 50 não havia CD pirata, nem se falava no assunto.
– “Piratas, no sentido de bambas, aqueles que dominam o ritmo, como dominam os mares”, respondeu.
Com todos esses valores, Eliziário nunca descuidou da elegância, que não se resume só no vestir. Elegante nos gestos, nas palavras, na finura e na generosidade, posso dizer que Parnaíba perdeu uma das pessoas mais educadas como poucas que conheci pelo mundo afora. Sempre achei que ele revelava uma aura de santidade que faz lembrar Pixinguinha ou Paulinho da Viola. Aos familiares de Eliziário e especialmente à dona Socorro (Mocinha), o abraço de todos os freqüentadores das manhãs de domingo, e adoradores do cafezinho na varanda. Nossa infinita saudade.