INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
Vitor de Athayde Couto
Apaixona-se pela cantora mais bonita da internet. Como se mirasse uma paisagem virtual, ela canta uma linda canção de amor verdadeiro.
É muita sorte encontrar alguém assim entre milhões de possibilidades virtuais. Certo de que são feitos um para o outro, ele salva o precioso link na sua trilha sonora. A trilha é protegida por um labirinto de sonhos e senhas.
Droga, como toda felicidade traz infelicidade (porque uma não existe sem a outra), observa que aquela mesma cantora tem vários “donos”, pois foi postada em canais e plataformas de milhares de youtubers, influencers, instagramers, telegramers, comegramers, facebookers, linkediners, bloggers, tiktokers, zappers, gamers, players, trashers e bostamakers. Até farialimers!
Ele assiste dezenas de vezes aos milhares de vídeos da cantora. Isso o faz ficar perdidamente apaixonado, ciumento e mais parecido com um mínion da 5ª série à espera do seu princeso malvado favorito.
Insistindo noites e noites até encontrar o endereço de sua amada, observa, emocionado, que ela mora sozinha num ap, ops, num app. Decide ir até lá, sem se importar com o horário.
Segurando firmemente as crinas do seu mouse branco e alado, cavalga sem descanso por toda aquela noite. Graças aos sinais robustos de uaifái, combate raios, meteoritos e dragões, tempestades e constelações de satélites, bugs e vírus, até chegar ao seu destino. Lá finalmente descobre que o app não é um ap, muito menos um apartamento. Trata-se apenas de um aplicativo que hospeda sua amada virtual intocável, produzida por Inteligência Artificial. Só então percebe que ela canta com uma voz exagerada e tecnicamente afinada, pela boca repleta de dentes de um teclado eletrônico. Canta, sem nenhum sentimento, nem mesmo de ódio ou indiferença, a exibir no rosto a mesma expressão sem vida de falsos sorrisos fractais.
Agora, mais conformado, ele volta ao seu quarto. Deita-se na cama, fecha os olhos e ouve, baixinho, a voz do universo: ei, rapaz, gente de verdade sempre desafina na música e na vida; aceite-as assim que dói menos.
Sobre a mesa de cabeceira, um livro aberto exibe, sublinhados, estes versos escritos há mais de cem anos, por um profeta chamado Álvaro de Campos, que ninguém nem sabe se algum dia existiu:
“Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?”
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Ouça o áudio com a narração do autor:
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