LÁ ELE
Vitor de Athayde Couto
OS GALOS URBANOS: Sempre polifônicos (por não cantarem sozinhos), galos urbanos desanoitecem auroras de sangue, e acordam os vizinhos.
OS VIZINHOS: Vizinhos bêbados reclamam, aos gritos. Até ouvi dizer que eles passaram a noite inteira na festa de São Gonçalo, ouvindo sons estranhos, e dançando a nova dança do aicremonopocleorici-animigolimarré, que ninguém sabe o que é. Chegaram até a pensar que era música, mas agora morrem de ressaca e dor de cabeça.
AS VOVÓS: Tudo parece normal, quando, do quase nada, vovós irritadas gritam com netos madrugadores: “Vão ver se a galinha já pôs o ovo, vão!”.
AS GALINHAS: Mas as vovós não sabiam que, na madrugada, as galinhas apenas rezam, em silêncio, enquanto o primeiro rei discute com o segundo.
O PRIMEIRO REI: O galo, rei do terreiro, todo se achando tenor, cacareja árias de desafios ao astro-rei, o Sol. E assim, o galo vai delimitando seu pequeno território, do tamanho de uma gota no oceano do sistema solar.
O SEGUNDO REI: Furioso por não poder dormir do outro lado do mundo, o astro-rei manda os seus primeiros raios raivosos – como se fosse um deus caquético, que nem esses deuses de antigos testamentos.
AS GALINHAS: Do lado de cá, as galinhas, aterrorizadas, continuam rezando, silentes. Até hoje elas acreditam que, “de madrugada, todo gato é pardo”. Mal sabem que o mundo mudou e os gatos já foram colorizados. Dizem que gato colorizado não come mais galinhas nem pintinhos. Só ração super prime.
O GATO: Com seus olhos de mistério e cristal, o gato reflete arcos-íris, com sete cores e vidas. Ao atingir a oitava vida, isto é, a morte (ou, quem sabe, a vida eterna – o que dá no mesmo), o gato ordena: “Enterrem-me como sempre vivi, de pé!”.
MORAL DA HISTÓRIA: Quem não tem bichanada, caça como cão, no buraco do tatíbis. Lá ele.
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