Neste último final de semana reli o livro “O Alienista” de Machado de Assis. Nele, o autor retrata o mundo perturbado da cidade de Itaguaí (RJ), onde ali vivera um médico, Dr. Simão Bacamarte, que decidiu pedir licença à Câmara para agasalhar e tratar no edifício que ia construir todos os loucos daquela localidade e das demais vilas e cidades vizinhas.
Depois de muito tempo de estudo, e após constatar que quatro quintos da população estavam internados no citado edifício (Casa Verde), o doutor Simão Bacamarte foi levado a rever os fundamentos da sua teoria para admitir como normal o desequilíbrio das faculdades e como hipóteses patológicas todos os casos em que o equilíbrio fosse constante. Assim, com base nessa nova convicção, o Alienista (médico) decidiu dar liberdade aos reclusos da Casa Verde e agasalhar nela as pessoas até então vistas como equilibradas.
Enfim, na visão do Dr. Bacamarte, os “loucos” tornar-se-iam sãos e, por outro lado, todos aqueles que agissem em perfeito equilíbrio das faculdades eram a partir dali considerados insanos.
O conto se passa na pequena cidade de Itaguaí, contudo, Machado de Assis, com sua genialidade e elevada sensibilidade, retrata o que, no fundo, ocorre em todo lugar. O livro escrito entre 1881 e 1882 ainda é bem atual, e se hoje fosse reescrito Itaguaí poderia ser substituída por Brasília, porque ali se poderia colher mais facilmente exemplos de atitudes desequilibradas vistas com ar de normalidade.
O fato é que a irônica crítica de Machado de Assis à sociedade burguesa do século XIX encaixa-se perfeitamente aos dias atuais, e a relação entre a psiquiatria e ordem pública merece um estudo cada vez mais aprofundado, até porque às vezes a impressão que se tem é de que as coisas do mundo realmente estão de ponta-cabeça.
Outro dia li na internet que para atender um paciente diabético em situação complicada, e que necessita de seis a oito dias de internação, o SUS paga ao hospital a bagatela de R$ 360,80 e ao médico, por este atendimento, R$ 50,01. Para uma cirurgia cardíaca, procedimento de alta complexidade, no caso de uma Angioplastia, o médico não chega a receber R$ 300,00 do SUS. Com a saúde sem a menor estrutura, sem investimento público e sem salários dignos, o Governo Federal ainda quer importar 6000 médicos de outros países.
Trabalhamos cinco meses do ano só para pagar tributos (impostos, taxas e contribuições). Na economia, o PIB está tendendo a zero, a inflação já voltou depois de quase vinte anos esquecida, e no índice de competitividade global o Brasil está “lá atrás”, nos quesitos infraestrutura (104º), desequilíbrios macroeconômicos (115º), má qualidade da educação (115º), rigidez no mercado de trabalho (121º) e pouco incentivo à competição (132º), mas, enquanto isso, o índice de popularidade do Governo é de 79%, prova de que o povo encara com normalidade a situação de instabilidade em que vivemos.
O Governo gasta mais de 7 bilhões com reforma de estádios para a Copa do Mundo, apesar de tantas outras prioridades e mesmo diante da grave seca que assola o nordeste. Enquanto o Estado investe bilhões em obras faraônicas, inclusive projetando trem-bala ao custo de 30 bilhões de reais, o Judiciário, a saúde e a educação padecem por falta de investimento.
Apesar da CF/88 ter instituído um Estado Democrático de Direito, a liberdade de imprensa está comprometida, tanto que o Brasil ficou na 91ª posição em um ranking que pesquisa o nível da liberdade de imprensa nos países dos 5 continentes e elaborado pela organização internacional Freedom House.
No campo do Direito e das Ciências Contábeis, as coisas também parecem estar de ponta-cabeça. Por exemplo, no artigo intitulado “O Calvário da Produção”, publicado na Consulex de Abril/2013, Sérgio Aprobato Machado Júnior informa que “em 23 anos foram editadas mais de 3,7 milhões de normas tributárias no Brasil. Atualmente, uma empresa deve cumprir aproximadamente 3.400 normas, o que equivale a 5,9 quilômetros de regulamentações. Em cada ‘criação’, uma carga de imposto a mais. É o medonho casamento da insanidade com o maquiavelismo”.
Segundo Sérgio Aprobato Machado Júnior, “para se ter uma ideia da marcha da insensatez: entre as normas federais, dos 26 Estados e de mais de cinco mil Municípios, são em média 35 regulamentações tributárias por dia útil”. Quem consegue entender? É de fato “o casamento da insanidade com o maquiavelismo”.
Outro caso interessante: consoante a Associação dos Advogados de São Paulo, as “duas importantes reformas na legislação penal brasileira caminham em sentidos opostos. De um lado está o projeto de alteração do Código de Processo Penal, aprovado pelo Senado em dezembro de 2009. De outro está a proposta de mudança do Código Penal, em fase de elaboração por uma comissão de juristas. Enquanto o primeiro segue uma linha garantista – aumentando os direitos dos réus e ampliando seus poderes -, a segunda propõe uma série de aumentos de penas e de novos tipos penais”.
Segundo ainda a AASP, na proposta de alteração do Código Penal, “os juristas também decidiram descriminalizar o porte de drogas, desde que a quantidade encontrada com o usuário seja equivalente a cinco dias de uso e aumentar as hipóteses de exclusão do crime de aborto”.
O Relatório IPCLBrasil (Índice de Percepção do Cumprimento das Leis) constatou que 82% dos brasileiros acreditam que é fácil desobedecer as leis em nosso país, ou seja, segundo esse Relatório, poder-se-ia argumentar que no Brasil há um excesso de formalismo, “mas, no dia a dia, de forma geral, os cidadãos não levam em conta as leis”.
E assim seguimos, a exemplo de Dr. Bacamarte, na linha divisória entre a normalidade e a insanidade, buscando avaliar e entender os fatos e o comportamento social, muitas vezes sem conseguir. Como dizia Raul Seixas, “aprendendo a ser louco, maluco total, na loucura real…”