O TIOZÃO DO CHURRASCO E A TIA DO BOM DIA

Vitor de Athayde Couto

Certa vez (haha, nem acredito que estou começando um texto com certa vez) um amigo perguntou, após longa troca de ideias a respeito de gastronomia:

 

– Mani, afinal, qual é o prato típico do Delta de Parnásia?

 

Lembrei de outro amigo que encaminhou um vídeo, desses de divulgação do trêidi turístico, aff… Bem, pelo menos eu ri muito assistindo ao vídeo. E fazer rir hoje em dia tá bem difícil… Ah, sim… quer saber por que eu ri? Então, lá vai. Era mais um desses vídeos de drone sobre o mesmo delta da pergunta do primeiro amigo. As imagens e narrativas de uma suposta cozinha ancestral…

 

– Diabé cozinha ancestral, miga? – perguntou Anaïs.

 

– Sei lá… exibiam aqueles pratos-quadrados-de-restaurante-caro, com um tico de comida, um fio de azeite, uma decoração de melecas coloridas lembrando telas de Miró. En plus, havia um toque de manjericão. O plus a mais era uma folhinha solitária, decorando o prato. As melecas são edulcorantes industriais, tinturas em pasta, que espirram de dentro daqueles aplicadores plásticos como os ketchup e mostarda da barraca do dogão da pracinha. Fiquei imaginando um pequeno grupo de tremembés, nativos do delta, sobrevivendo da caça e pesca, em torno de um fogo, cada um segurando o seu prato quadrado, degustando aquela cozinha ancestral típica do delta… ô bicho besta é turista!

 

Paul Bocuse, o premiado chef do século e papa da gastronomia, foi quem criou a nouvelle cuisine, a tal cozinha contemporânea. No final da sua carreira, já irritado com tanta presepada decorativa e oportunista, declarou, numa de suas últimas entrevistas, que estava chateado com o que fizeram com a sua criação. E foi além. Disse que não praticaria mais a cozinha contemporânea.

 

– Por quê? – perguntou o repórter.

 

– Você quer mesmo saber? – perguntou Paul.

 

– Sim. Por favor, Monsieur Bocuse.

 

– Veja o que fizeram com a minha nouvelle cuisine: é nada no prato e tudo na conta. Isso é épouvantable!

 

Volto ao primeiro amigo, tão sério e tão chato quanto eu. Sabendo que ele não ficaria sem uma resposta, nem que fosse um simples, corajoso e sincero “não sei”, respondi, com segurança:

 

– O prato típico que simboliza a cozinha do Delta de Parnásia é o sapeco.

 

Haha, só vendo a cara dele! Inteligente e culto, olhou pra mim, assim, de cima pra baixo. Parecia o Duque de Hastings encarando a Daphne na novelinha besta, Bridgerton. O seu olhar queria dizer: ok, agora se explique, sua chinoca!

 

– Pois é, disse eu. Somos todos e todas tremembés. Se não no sangue, pelo menos na alma. Essa é a nossa cultura. Não conseguimos fazer um churrasco que preste. Malmente cortamos bifinhos, assamos tanto até virar um sapeco. Mas todo mundo tem churrasqueira top no espaço mais nobre da casa, haha. Em Parnásia, as churrasqueiras são tão importantes que elas chegam a ocupar espaços públicos como calçadas, praças… tem até trempe de jante no asfalto! Mas todo mundo respeita, maior valor. Quem quiser que reclame. Danem-se as leis, os idosos e os cadeirantes que precisam de calçadas livres de tralhas. As invasões e as tralhas deram à cidade um elevado índice de imobilidade urbana.

 

Por essas e outras, falar de churrasco dá mais briga do que discutir política, futebol e religião. Ainda me vem o tiozão dar palpite. O tiozão do churrasco, aff… Toda família tem um. Ele só conhece picanha zebuína e tilápias exóticas criadas com ração de soja transgênica. Tudo bem sapecado e com bastante sal. As chamas têm que ser bem altas, porque brasa não sapeca. Só fogo vivo.

 

– Tilápias exóticas? Diabéisso, miga?

 

– Sim, exóticas. Não existiam tilápias no Brasil. Elas vieram do Egito. Mas ainda não conseguiram superar, em ruindade, os salmões coloridos do Chile. Isso dá uma baita discussão em torno da churrasqueira. Falar mal de salmão incomoda as pessoas que dizem gostar de comida japonesa. Elas pensam que comem comida japonesa só porque frequentam restaurantes com nome japonês, cujos sushimen servem cream cheese tipicamente japonês, haha.

 

– Haha, pelo menos, assunto não falta pra se conversar.

 

– Sim, desde que o tiozão do churrasco fique calado. Mas ele não consegue. A gente quer apreciar um batidão cuiabano, e ele fica o tempo todo repetindo: isso não é música! Isso não é música! Além de dar palpites culinários, fica disparando, pelo celular, propagandas do seu candidato preferido. Até fora da época de eleições. Um inferno!

 

– Verdade – disse o amigo número um, aproximando-se. Eu tive que bloquear um tio meu. Ele não parava de mandar propagandas do seu candidato, aff… O lixo era disparado tanto do celular particular quanto do emprego dele.

 

– Pois isso não é nada. E eu? Tive que bloquear uma tia do bom dia.

 

– Aí não. Tenha paciência… a idade… é só um bom dia. Depois você deleta.

 

– Tá por fora. Os bons dias dela começavam a chegar às 4:30 da madrugada e me acordavam no melhor do sono. Depois, às 5:00. Não tinha limite, já era doença. Os bons dias mais trashes vinham acompanhados daquelas flores transgênicas da Holambra, ao som de um teclado eletrônico… aff… Felizmente, as imagens de Jesus-de-olhos-azuis, estilo Gênesis, ficaram mais escassas. Parece até que o Messias andou cobrando direitos autorais para financiar umas obras lá no Céu. Fazer umas pracinhas, pintar meios-fios, essas coisas que os prefeitos chamam de requalificação. Tudo isso para atrair os fiéis que estão debandando das igrejas para irem atrás dos forronejos e pisadinhas.

 

– Ora, sua lesa, basta você desligar o celular quando for dormir.

 

– Posso não. Tenho família que vive muito longe, em diferentes fusos horários do planeta. E nunca sobra tempo pra ficar administrando dois ou três números de celular, com agendas específicas. Que nem esse pessoal que tem contatos convenientes e inconvenientes. Sabe? Aquele número secreto de celular, que não se divulga pra ninguém, exceto pessoas muito íntimas? Mas, se você quiser divulgar, virar influencer célebre e monetizada, basta informar para uma pessoa, qualquer pessoa, e dizer: não dê meu número pra ninguém, viu? No dia seguinte você vai receber propaganda até de produto para aumentar o tamanho do grilo falante…