QUEM PENSA QUE JÁ VIU TUDO NÃO CONHECE PARNASIA

 

Vitor de Athayde Couto

 

Contando, ninguém acredita. Esta frase me faz lembrar um gringo que visitava a nossa invicta Parnasia. Não dá pra esquecer. Ele passou o dia todo fotografando motocicletas. Não deixei de sentir um certo orgulho. Afinal, estamos bem classificados entre as dez capitais nacionais com o maior número de motocicletas per capita, segundo o Ipea.

 

Nesse momento, Mani aproximou-se e arriscou no seu inglês meia boca:

 

— Turista?

 

— Ahan — o gringo respondeu.

 

Confesso — pensou Mani — que já tinha ouvido muitas abreviações de yes, como yeah, yeh, yah, até iéiéié, mas… “ahan”, foi a primeira vez. Fiquei insegura, sem saber se estava incomodando ou se o gringo falava simplesmente um ingreis internacional de fronteira, de nível instabyfeici. Sempre que estou em crise de depressão tento sair da baixaria acreditando que a palavra facebook foi pronunciada, pela primeira vez, no Dia da Criação, quando Deus, entre outras coisas, disse: “Faça-se o livro!”. E fez-se book. E Deus achou que isso era bom, mas não se pode dizer que a humanidade tenha essa mesma opinião. Em outras crises, gosto de ficar imaginando coisas assim: e se Castro Alves vivesse hoje? Haha, em vez de recitar “Ó, bendito o que semeia / Livros / Livros à mancheia / E manda o povo pensar…”, ele diria, com aquele entusiasmo inovador: “Ó, bendito o que semeia / Tablets / Tablets à mancheia / E manda o povo zapear.” Ou melhor, manda áudo, porque ninguém sabe mais ler. Nem escrever.

 

Depois de uma série de fotos, aproveitando um desses raros intervalos de dez segundos, quando não se vê nenhuma moto passar, arrisquei mais uma pergunta ao turista, caprichando na ordem inversa que eu tinha aprendido no Ginásio Parnasiano:

 

— Onde é você de? Estados Unidos?

 

— Nova Zelândia — respondeu, olhando nos meus olhos.

 

Mais animada, continuei:

 

— Por que veio de tão longe? Fazer o que por aqui? — perguntei, sem parar de pensar em como tem gente doida nesse mundo. Se ele fosse de Luzilândia, tudo bem, haha. Mas era da Zelândia. Num é que parece? Luzilândia, Zelândia, quase a mesma coisa.

 

— Vim participar de uma competição de kitesurf, em Jeri.

 

— Ahan… — procurei imitar o gringo — Tá gostando das nossas motos? Aqui nós temos até Harley Davidson.

 

— Não é isso. O que estou fotografando não são as motos. São as pessoas em cima das motos.

 

— E por que, posso saber?

 

— Porque, quando eu voltar pra Nova Zelândia, se eu contar, ninguém acredita.

 

— Ninguém acredita em quê? — insisti curiosa.

 

— Bem… é que, em cima de duas rodas, viajam até seis pessoas de uma mesma família. E sem capacete — afirmou o neozelandês com uma expressão muito séria e preocupada.

 

Insistindo, outra vez, já desfeito mais um motivo do meu orgulho parnasiano, cheguei a duvidar. Daí ele me mostrou uma foto em que se viam, sobre uma mesma moto, seis pessoas: o piloto, na frente (provavelmente era o pai de alguma ou algumas das crianças, quem sabe?); logo atrás, a mulher, grávida, com uma barriga imensa; no colo, um bebezinho; na garupa, um menino, de uns três anos, e uma menina que aparentava cinco anos de idade. Família unida, todo mundo abraçado. Nos lados da moto, viam-se sacolas penduradas, cheias de pitchulas, biscoitos recheados, fandangos, cheetos, e um monte de dindim, já derretendo sob o sol.

 

— A senhora entendeu? Se eu contar, ninguém acredita. Tenho que mostrar as fotos. Tiro muitas fotos porque são incontáveis as combinações de passageiros e bagagens; algumas são tão inéditas, que eu nunca vi nem na Indonésia. Nem na Índia!

 

É verdade, pensei. A gente vai se acostumando e passa a não ver mais nada. Mas continua sendo impressionante a foto de um motoqueiro, com uma criancinha na frente, sentadinha em cima do depósito de combustível. Atrás, na garupa, um carona. Ele tentava equilibrar, sobre a cabeça, nada menos do que uma caixa d’água genérica de fibra de vidro, com capacidade para 250 litros.

 

À nossa volta, havia alguns pequenos restaurantes. Como era perto do meio-dia, misturavam-se todos os cheiros, imagináveis e inimagináveis de junk street food truck (comida ruim de rua). Tudo jajá (fast, em parnasianês). As pessoas parecem gostar. Claro, quem come fast não tem fastio. Estavam engolindo aquelas gororobas, quando foram invadidas pelo som de um alto-falante, que anunciava, no maior volume, a publicidade de um desses laboratórios de ocasião:

 

“FAÇA HOJE MESMO SEUS EXAMES DE FEZES, URINA, DIABETE E GLICEMIA!!!”

 

O neozelandês pediu para eu traduzir, aff… eu mereço. Alguém parou de engolir? Engulhou? De jeito nenhum. Começou foi um intervalo musical. Só se ouvia calcinha preta.

 

Apesar da música… música, não, corrigiu Mani. Apesar do som bem alto, ouviu-se um barulho forte e metálico vindo de um cruzamento próximo.

 

What’s the matter? — quis saber o gringo, curioso.

 

— Nada, não. É só mais um acidente de moto — respondeu Mani.

 

(próxima crônica: “O CASTELO DO THOR E O PAPAI NOEL NADA HAVER”)

 

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Escute o texto com a narração do próprio autor: