NO CONDOMÍNIO
Na escola, os meninos têm a bunda quadrada e as meninas são CDFs. A mídia diz que são nerds ou geeks. De tanto estudar, acima da meta estabelecida pelo governo, algumas surtam e vão parar na casa de orates. Eu, não. Continuo morando no condomínio.
– Quem gosta de falar “novo normal” diz que não suporta mais ouvir falar nisso.
– E quando essa mania começou? – perguntou meu vizinho condômino.
– Sei lá. Nem sei quem inventou isso.
– Será coisa da imprensa?
– Da imprensa, não. Da mídia, haha. Acho errado falar “novo normal”.
– Por quê?
– O certo é “novo anormal”. Não estamos saindo de nenhum “velho normal”. Se todo mundo pular fora da curva, a curva deixa de existir.
– Isso é bom?
– Depende. Para os estatísticos, tenho dúvidas. Vai rolar desemprego. E se os estatísticos ficarem desempregados? Quem vai contar os mortos?
– Não precisa – arrematou o vizinho.
– Por quê?
– Porque… Repare, se ninguém contar os mortos, é porque não há mortos. É melhor falar só dos recuperados. Entendeu?
Meu vizinho adora perguntar se eu entendi, e eu sempre respondo “mais ou menos”. Olhando nos seus olhos, disse-lhe:
– Cara, nunca pensei nisso. Lembro de ter recebido mensagens dos novos anormais dizendo pra gente parar de falar essas coisas. Só assim elas deixarão de existir.
– Sim, são os FDC, os fora-da-curva. E todo dia tem pain de mie.
– Onde?
– Aqui, no condomínio.
– Ah… Mas… Vixi! Pandemia? – perguntei.
– Não. Pain de mie, no café da manhã. Meu avô toca violino.
NO PÁTIO
A estagiária de Psicologia aproxima-se e chama para o banho diário de sol.
– Bora! Todo mundo no pátio! Circulando!
Os internos insistem em permanecer à sombra dos muros.
– Aí, não, já disse! Vocês têm que tomar banho de sol bem no meio do pátio! Bora!
Ninguém se moveu, e o meu vizinho gritava:
– Pera! Pera! Vocês estão ouvindo?
– O quê?
– Vozes.
– Vozes? Que vozes?
– Escutem! – diz o vizinho encostando o ouvido no muro alto que cerca o pátio.
Muitos se aproximam do muro alto e um deles diz:
– Não estou ouvindo nada.
Este é a parte daquela piada de hospício quando o vizinho devia dizer “desde ontem está assim, não se ouve nada”. Mas ele insistiu tanto que ouvia vozes, até que os demais acreditaram. E ouviram! Mas era uma língua estranha. Daí ele explicou em voz alta:
– Recebi mensagens da nuvem. Aleluia! Essas vozes são do comunismo, transmitidas diretamente da China. Todos devem tomar cuidado!
– Como? Se eu não vejo ninguém…
– O comunismo é assim mesmo. Invisível para os olhos – disse o vizinho, parodiando a raposa do Pequeno Príncipe. E insistiu: cuidado, muito cuidado!
– Cuidado com o quê? – perguntei.
Baixando a voz, o vizinho quase sussurrou:
– Cuidado com a geração 5G do vice-reino de Marte, governado pela IA.
– Não sei se entendi… Seremos governados pela Inteligência Artificial?
– Não. IA são as iniciais de Iron Ass dos marcianos. Repare, 5G é uma rede compatível com a última geração TIC-TOC. Transmite informações secretas para o governo chinês em velocidade hipersônica. É a evolução do relógio TIC-TAC 2.0 do Capitão Hook.
– O relógio do pirata, que o crocodilo engoliu? Mas eu nem gosto de cuscuz de milho.
– Sim, na Terra do Nunca. O capitão foge do crocodilo como quem foge da… da…
– Do comunismo? Por ter comido a mão dele no café da manhã?
– Sim, isso mesmo. A CIA descobriu que o crocodilo é comunista. Por falta de criancinhas no café da manhã, comeu a mão do pirata. O capitão foge do comunismo.
– Não seriam Tico e Teco? Os dois neurônios da piada politicamente incorreta da loira?
– Não – disse o vizinho, baixando ainda mais a voz, enquanto chamava os outros para o meio do pátio. – Venham todos. Saiam de perto do muro. De acordo com a mensagem transmitida diretamente da nuvem, trata-se da Tecnologia Informática Comunista (TIC), e do TOC, transtorno que viralizou a partir de um disparo feito diretamente do gabinete do Estado Maior.
– O Estado do Amazonas? Égua! E o que a gente vai fazer pra se defender?
Elevando a voz, o vizinho foi categórico:
– Tomar cloroquina! Clo-ro-qui-na! Entendeu?
– Mais ou menos. Mas… será que faz efeito?
– Faz, sim. Efeito imediato. Leva você direto pro penico. Mas, se não for imediato, você pode tomar um reforço. É só misturar aquele antibiótico, divulgado pela televisão, com vitamina C, água de dez em dez minutos, banho de sol, remédio pra verme, banho de lua cheia, água sanitária, vodca, ozônio no forévis…
– E arminha? Não tem arminha?
– Não. Acho que isso já foi até esquecido. Sei lá. Talvez, quando o Natal chegar…
– Eita! Você me deu uma excelente ideia. Vou vender pistolas de verdade, serão os melhores presentes de Natal. Se o ganhador sorteado fizer merda e a polícia perguntar “de onde veio essa arma?”, ele responde “não sei, ganhei de um amigo secreto”.
NO SANATÓRIO GERAL
Aproxima-se uma camionete de entregas, lotada de CDFs. O motorista pergunta:
– É aqui o Condomínio Doutor Pinel?
– Sim, senhor. Condomínio Doutor Philippe Pinel, célebre psiquiatra francês…
– Tá bom, tá bom, cara. Só vim só entregar as CDFs.
– Oba! São as meninas que estudaram além do que foi determinado pelo governo?
– Não. CDFs são as camisas de força que o condomínio encomendou. Chame o síndico!
– Todos caíram na gargalhada.
– O que foi? – perguntou o motorista-entregador.
– É que o condomínio tá sem síndico. Infelizmente as camisas chegaram tarde demais – responderam. Faz tempo, o síndico foi morar na Terra do Nunca, e nunca mais voltou.
– E o sub-síndico?
– Viajou. Foi apagar uns incêndios lá no Estado Maior. Não disse quando volta.