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Sábado dia 9 estive na Fundação Raul Bacelar para ser o apresentador de um livro que estava sendo lançado pelo historiador e escritor Agostinho Torres e que teve uma cobertura muito generosa da TV Costa Norte. Familiares, amigos, representantes de entidades culturais estiveram presentes. E naquela ocasião eu fiz a apresentação do O que acontece quando não estamos olhando, que reproduzo a seguir:

Certa vez eu tive necessidade dos serviços de um ourives. Em lá chegando fiquei, antes de pedir o conserto da joia, olhando como é importante, cauteloso e cheio de silêncios uma arte que atravessa a vida dos homens e enobrece o pescoço, os braços e os dedos das mulheres. Ele tomou nas mãos o pequeno anel que eu trouxera embrulhado num papel ordinário.

E quase sem prestar atenção para minha pessoa passou a joia da mão direita para a esquerda, olhou, olhou outra vez contra a luz, jogou em cima da bancada e até chegou a morder de leve. E eu ali atento e silencioso, com vontade de dizer alguma coisa, mas não me atrevi a quebrar aquele seu serviço. O ourives permanecia com o anel entre os dedos, esfregando na palma da mão e na camisa.

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Naqueles intermináveis minutos que mais pareceram séculos eu tive a sensação de que ele, o ourives, quando levantasse os olhos em minha direção haveria de dizer que o anel era falso. Por fim quando se dispôs a dar seu diagnóstico, tal e qual um médico na frente de um paciente ansioso, eu tive a certeza de que o anel tinha uma valia imensa.

E eu agora me transportei para o humilde ourives na condição de ter a felicidade de avaliar e dar testemunho do alto valor da peça. Não um anel de ouro cravejado de diamantes ou de opalas de Pedro II, mas de um livro. O ourives ao me entregar o anel, que veio ficar preso no meu dedo, tinha certeza de ter cumprido seu ofício. E mais ainda, de ter ganhado minha confiança.

A peça que chegou às mãos desse humilde ourives das letras é o livro O que acontece quando não estamos olhando, de autoria do meu amigo Agostinho Torres. Diferente dos anéis e braceletes de ouro puro, que podem com o tempo perder o valor e o brilho, trocar de dono ou serem vendidos por uma ninharia quando o dono estiver em dificuldades, este livro é uma coletânea de contos sobre o sobrenatural cotidiano.

Há de com o tempo ganhar outros donos, influenciar atitudes, aproximar os homens e viajar pelo mundo. Uma joia impressa em papel. Agostinho Torres colocou nessa obra toda a sua inteligência e sensibilidade. Não se pense que ao ler este livro, nós aqui desta parte mais alta da coroa piauiense haveremos de encontrar referências e reverências ao passado, como é costume na nossa literatura.

“O que acontece quando não estamos olhando” não está impregnado pela fuligem da história do Piauí, suas irremovíveis figuras da província e todos aqueles que lhes fizeram parelha. Agostinho Torres, com este livro rompe com o sistema e alça voo próprio. Seu livro tem uma feição universal, moderna, fala de seu tempo, das suas e das 

nossas angústias e sonhos. Agostinho Torres passa a fazer parte do seleto grupo de escritores piauienses que falam do seu tempo e após ele. Sua cultura não se abre e nem se fecha no velho curral do regionalismo. Ele vai além da porteira, corre o mundo, renova linguagem, une seu tempo e o tempo de seus amigos de geração.

Coloca com este livro a literatura piauiense num degrau e em pé de igualdade com os grandes escritores porque foi beber do mesmo vinho de Lewis Carrol e Clive Barker. Mas não deixa de fazer referências à sua Teresina, cidade onde nasceu há vinte e cinco anos. Como no conto Frei Serafim. E de Parnaíba, cidade onde passou parte da infância, traz lembranças dos amigos de férias jogando Nintendo e fazendo outras peraltices. Esse mundo dos games e da vida livre.

Agostinho Torres traz para esta obra e paras as outras já publicadas. A diferença entre o escritor Agostinho Torres e os escritores da antiga geração, da qual eu ainda faço parte, é a audácia de sair pelo mundo além dos muros da terra piauiense. “O que acontece quando não estamos olhando” tanto pode ser lido por jovens universitários de Amsterdam, Toronto quanto de Picos.

E como um escritor audacioso certamente Agostinho Torres, que gosta de testar nossa coragem com o sobrenatural, não deve ter nos planos pertencer a uma academia de letras. Sua geração reclama mais liberdade para criar e se lançar no mundo porque é uma geração que criou e usa à exaustão ferramentas poderosas de compartilhamento.

Assim, Agostinho Torres chega ao mundo das letras. Mas como é inquieto demais e novo demais, não deve ficar encastelado numa entidade. Creio ter cumprido meu ofício, de ourives. A joia está lançada. Que a sensibilidade dos leitores possa trazer a partir desta noite, aqui na calorosa Fundação Raul Bacelar, o reconhecimento a essa obra, porque é assim que acontece quando não estamos olhando.

Muito obrigado.