TALVEZ

 

Vitor de Athayde Couto

 

Maio de 1968. Era proibido proibir. Acreditamos. Algumas pagaram com a vida. Das que sobreviveram, muitas enlouqueceram. O mundo também. As nossas mães já não diziam “não”. Agora, loucas, eu e o mundo, nenhuma pode julgar a outra. Pelo menos de um ponto de vista normal. Aliás, o que é ser normal?

 

Bem, miga. Pode-se ver que sobrevivi. Como esquecer os dias de frio inverno naquela prisão coletiva de Parnasia? De todas as nossas roupas e pertences, restaram apenas sutiãs e calcinhas úmidas sobre os nossos corpos. Havia muita água suja pelo chão, cerca de um palmo de profundidade. E urina, e fezes. Tudo misturado. O caldo mostarda cobria o banheiro e toda a extensão horizontal da cela. Cobria nossos pés provocando tosses e espirros.

 

Aparentemente enorme, a cela ficou pequena para tanta gente. Eram mais de quarenta estudantes capturadas na universidade. Filosofia, Letras, Medicina e Administração eram as mais ativas, portanto, mais visadas.

 

Nunca mais fomos as mesmas. Tornamo-nos muito diferentes dos nossos pais de classe média. Do pior ainda não falei: a incerteza, a dúvida e o medo. Os carcereiros, em suas raras e sádicas aparições, nunca diziam o que ia acontecer com a gente – até porque nem eles sabiam. Apenas nos olhavam, babando, com olhos de espectadores de filme pornô. Riam, pelo canto da boca, risos que pareciam vir diretamente do baço. Estávamos isoladas, incomunicáveis. As notícias que chegavam, verdadeiras ou não, referiam-se a sessões de tortura em paus-de-arara, seguidas de passeios nos helicópteros da marinha, de onde corpos eram atirados em alto mar. Se as mãos eram amarradas por trás? Ora, para os tubarões, isso não fazia a menor diferença.

 

Cansadas de permanecer em pé, sem roupas e sem chão para sentar, finalmente o reitor apareceu do lado de fora das grades. O magnífico indireto, que mais tarde viria a ser governador biônico do estado, fez um discurso rápido. Repetiu o clássico “vou ver o que posso fazer por vocês”. Depois sumiu sob algumas palmas e vaias, entre hesitantes e nervosas. Estávamos sem previsão de nada. Sabíamos apenas que o reitor tinha trânsito entre os ômi. Compreendi ser essa a esperança que ainda nos restava.

 

Sobreviventes, enlouquecemos todas. Sim, o mundo e nós. Agora, loucas, nós e o mundo e eu, Mani, tínhamos uma vida pela frente. Vida? Que vida? A primeira metade das prisioneiras, egressa do partidão, aderiu ao biônico de plantão, sempre assentada em altos cargos dêaésses no governo. Compreende-se, o medo era real. A vontade de consumir, também. Com as demais aconteceu “de um tudo”, como costuma dizer minha freguesa de acarajé. A segunda metade fragmentou-se e saiu gritando, louca e roucamente para ninguém ouvir:

 

– A luta continua!

 

Também se compreende. Na terceira metade, que só existe na realidade dos nossos pensamentos inquietos, encontravam-se eu e mais três amigas. Incompreensíveis e incompreendidas, confiamos num violão, na Rita Lee, e nas nossas vozes igualmente roucas. Na estrada pedimos carona, casa e comida – mesmo sabendo que “não é só casa e comida que faz a mulher feliz”.

 

Só queríamos uma única coisa: liberdade. Fui reencontrá-la na França, dez anos depois. Mal sabia lidar com ela, a liberdade. Nem eu, nem as chilenas, nem as argentinas, nem as iranianas… Restava-nos recorrer ao analista, que felizmente já era custeado pelo sistema de saúde pública francês. Mas eu nem fui lá. Descrente que era, para mim restou apenas a célebre pergunta: “Como vai?”, a célebre resposta “Tudo bem!”, e estes fragmentos de versos que nunca esqueci – talvez porque tenham sido dedicados a mim e à minha geração: “Me cansei de lero-lero… Me cansei de escutar opiniões de como ter um mundo melhor… Mas ninguém sai de cima desse chove-não-molha… Eu sei que agora eu vou é cuidar mais de mim… e talvez ainda faça um monte de gente feliz.” Talvez.

 

COMENTÁRIOS DE ALGUNS LEITORES:

 

– O que é Parnasia? Onde fica? Em Montparnasse?

 

– Quem é Mani? Qual a sua origem?

 

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Escute o texto com a narração do próprio autor:

 

 

Foto: As atrizes Eva Todor, Tônia Carrero, Eva Wilma, Leila Diniz, Odete Lara e Norma Bengell em 1968, durante a passeata dos cem mil, em protesto contra a ditadura militar no Brasil, no Rio de Janeiro