TUDO CORNO

 

Vitor de Athayde Couto

 

Lembro de uma das primeiras crianças que registrei – disse a escrivã. Era um menino e já estava bem crescido. A mãe puxava o menino pela mão. Com ela não veio mais ninguém da família. Viajaram só os dois, mãe e filho. Trouxeram um recorte de uma velha revista “Tititi”, onde se lia o nome de um personagem, Gerson. Devia ser galã daquelas novelas ópera sabão. Gerson, assim ela chamava o menino. Como estava na revista, não tinha como errar a escrita. Mas aí, quando chegou a hora de escrever o nome do pai, eu já fui adiantando e perguntei:

 

– O pai é o Sr. Geraldo de quê?

 

– O quê? – a mãe gritou com sangue no olho.

 

Eita que a mãe se injuriou e disse que o menino não tinha pai, e, se tivesse, não ia nem saber quem era. Ela até me confessou que tudo aconteceu durante um batidão cuiabano, rolava muita bebida doida. Boas noites Cinderelas, Belas Adormecidas e outras drogas. Pra fechar com chave de ouro, a noite terminou em estupro coletivo dentro de uma kombi velha. Disse até que em Parnasia todo fim de semana acontece isso. Ainda bem que ela não precisou de terapia. Parece tão bem resolvida. Pra todo mundo lá do interior, onde moram, ela diz que o pai do Gerson morreu. Se perguntarem quem é o pai, ela brada: “o falecido?”. Coisa de menina sem juízo. Morre se não sair todo fim de semana. Mas também pode ser morta, ou quase, se sair.

 

– E como ficou o registro?

 

– Ficou assim mesmo. Sem pai. Como lhe disse, nesses casos, a gente sempre anota no registro “pai desconhecido”. Mesmo assim a curiosidade venceu e ela perguntou por que eu achava que o pai era Geraldo, se nem ela sabia (ou sabia?) o nome do animal tarado que participou do estupro coletivo. Só lembrava que todos eram cobertos de tatuagens. Foi aí que eu expliquei, sem muitos detalhes, que Gerson significa filho de Geraldo. Quando dei outros exemplos, ela caiu na gargalhada pouco normal. Depois ela falou com calma:

 

– Pois então. Lá no meu interior tem muita família metida a besta. Quer dizer que aqueles meninos são tudo fi de corno? haha. Lá tem Jackson, mas o pai não se chama Jack. Tem Edson, mas o pai não é Eduardo. Tem Robson, mas o pai não é Roberto. Tem Carlson, mas o pai não é Carlos. Tem Richardson, mas o pai não é Ricardo. Pra mim, é tudo corno. Tu-do cor-no! O mais engraçado é que, nas casas onde as mães têm maridos, muitos têm esses nomes: Geraldo, Jack, Eduardo, Roberto, Jacob, Ricardo… Mas os nomes dos filhos são trocados. É fácil entender como tudo aconteceu. É só ligar o som. Tudo feito debaixo do batidão cuiabano. Antes de se despedir, ela perguntou se, em vez de “pai desconhecido”, não podia ser “soldado desconhecido”. Fica mais chique, disse ela. Eu respondi: se a senhora gosta…

 

– Eita que você tem muita informação, não é?

 

– Sim, você não faz ideia. Outro dia chegou uma menina novinha, uma criança, querendo registrar um filho pelo nome… você não vai acreditar.

 

– Por quê não vou? Que nome é esse?

 

– Brinquedo, minha filha. Brinquedo.

 

– O quê?

 

– Sim. Brinquedo. Deve ter engravidado num baile funk. Ela gosta tanto de funk que passa o dia ouvindo McToy. Descobri que MC significa Mestre de Cerimônia. Mas hoje se pronuncia em inglês Emicí, para designar os cantores de funk. Por coincidência, Mc, que vem do gaélico escocês, significa filho de. MacArthur ou simplesmente McArthur é filho de Arthur. McDonald, filho de Donald… logo, McToy só pode ser filho de Brinquedo. Só aí que fui entender. É o brinquedo da criança que não teve infância. Passa o dia sacudindo o Brinquedo no colo. Ela vai brincar de boneca até o dia em que diz que vai ter que sair pra trabalhar e deixa o Brinquedo com a avó. Pra variar. Não demora, vai ganhar outro brinquedo. É nos cartórios que a gente fica sabendo da vida de todo mundo – disse a escrivã. Mas o povo é sábio. Pra resolver essas questões, botam apelido em todo mundo. Os pais chamados Geraldo, Jack, Eduardo, Roberto, Jacob, Ricardo… são tratados como Nego, Louro, Júnior, Barberim, Neto, Cabeção…

 

– Entendi, haha.

 

(próxima crônica: “APELIDOS”)

 

COMENTÁRIOS – Um leitor queixou-se da minha criatividade. Disse que está fraca. E é verdade. Por mais que eu ative a minha imaginação, não chego nem perto da realidade: “Viúva não libera nem permite embalsamar o corpo do pastor porque ele vai ressuscitar no terceiro dia”. Agradeci pela notícia. Prometi me informar melhor para caprichar na crônica “O pastor Sirica” que virá logo depois da crônica “Apelidos” que já está no prelo.

 

NOTÍCIA – O livro “Contos de Parnasia” estará na XX Bienal do Livro, maior evento literário do país, no Riocentro. Será apresentado no espaço da Editora Autografia das 19:30 às 21:00 do dia 04/12/2021. Eparrêi! Além da versão física, a versão e-book estará disponível para facilitar o trabalho do Papai Noel.

 

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Escute o texto com a narração do próprio autor: