EU TENHO UMA TIURÍA

 

Vitor de Athayde Couto

 

– Eu tenho uma tiuría…

 

Quando alguém começa um lero dizendo que tem uma tiuría, eu… eu começo a pensar em qual fase da Lua estamos, se a tábua de marés está favorável a uma boa pescaria, assim, assim…

 

Antigamente um ou outro raríssimo gênio trabalhador conseguia até formular alguma teoria. Hoje, isso é quase impossível. As teorias são construídas coletivamente, assim como as pesquisas. Em redes telemáticas multi-institucionais.

 

Os experimentos, cada vez mais sofisticados, requerem infraestrutura robusta e cara. Caso se produza alguma comprovação importante e resultados, a etapa seguinte é construir um corpo de conceitos minimamente coerente. Daí publicam-se artigos em revistas reconhecidamente científicas, uma vez aprovados e recomendados pelos pares externos. Com o tempo, caso a comunidade científica instituída (ou parte dela) reconheça o conhecimento novo, pode-se começar a falar em teoria. O tempo e os fatos dirão se a nova teoria é durável ou sustentável, sem o que não se consolida.

 

Tudo começa com um problema e uma questão corretamente formulada.

 

E quico?, ou seja, por que toco nesse assunto?

 

Estava consultando, na internet, a respeito de uma questão que sempre me despertou curiosidade: por que letra de médico é quase sempre ilegível?

 

Deparei-me com uma tal Desciclopédia onde se lê: “Na verdade existem mais de 8.000 teorias sobre a letra de médicos, nós listamos apenas as três mais aceitas por estudiosos.” Uma delas parte da existência de máfias envolvendo médicos, clientes e donos de boticas (farmacêuticos). Outra teria começado com mensagens codificadas entre um médico gay (ops!) e um dono de botica gay (ops! ops!). A terceira parte da velha desculpa de sempre: escrever ligeiro para atender muitos pacientes.

 

É óbvio que essas teorias entre aspas não passam de mais um deboche entre os milhões que circulam na internet. Infelizmente muitos adolescentes transcrevem esses lixos para os seus trabalhos escolares, seguros de que estão… com perdão da palavra… “pesquisando”.

 

Ainda muito curioso, procurei, entre os familiares médicos, aquele mais conceituado, devido não só à sua competência e experiência, mas, sobretudo, por ser um intelectual. Ele respondeu com ricos detalhes históricos. É que na nossa tradição colonial, os primeiros cursos superiores eram destinados exclusivamente às elites (usineiros, fazendeiros de café, comerciantes…).

 

Os jovens médicos que se instalavam inicialmente nas cidades do interior tinham que impor bastante respeito, tanto pelo seu conhecimento, quanto pela sua riqueza e poder. Pouca gente sabe, mas a maioria dos jovens “doutores” de todas as áreas não sabia (e ainda não sabe) escrever corretamente. Por essa razão, receitas e diagnósticos escondiam uma caligrafia do tipo risque-rabisque que escamoteava potenciais incorreções gramaticais e ortográficas. Felizmente, muitos farmacêuticos conseguiam “traduzir” as receitas com base nos diagnósticos, evitando assim maiores tragédias.

 

Felizmente também (neste caso, para os jovens médicos de hoje), a informática aliviou um pouco o desastre. CID e protocolos jorram automaticamente dos computadores e se materializam nas impressoras. Agora, é somente requentar e usar, como diria Tomzé. Carimbar (nome e CRM), assinar e plunct-plact-zum!, como profetizou Raul Seixas no seu carimbador maluco.

 

Infelizmente, o problema continua. Porque o problema está no diagnóstico.

 

Erros gramaticais e ortográficos ajudam a descobrir bandidos. Recentemente, um falso médico receitou Potaciu. Outros dois, não tão falsos, pois têm registro no CRM, venderam atestados de comorbidade por vinte reais. Vinte reais! Para quem? Para fura-filas da vacina contra Covid-19.

 

Insisto, essa gente não brincou de médico na idade certa. Como diz a música “Dona Mariquinha, seu gatinho deu”, brincar de médico na idade certa é igual a piroca de gato: não mata ninguém.

 

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Escute o áudio com a narração do próprio autor: