A JUSTIÇA É CEGA, SURDA E MUDA
Vitor de Athayde Couto
Na cidade não se falava de outra coisa. Todo mundo parou e superlotou o fórum para assistir ao grande julgamento. A causa era a eterna briga entre o Pinto Mudo e o Grilo Falante.
Até hoje não se sabe com que objetivo, mas, acreditem, um homem e uma mulher disputam para ver quem tem mais terminações nervosas naturais. O homem declara duas mil. A mulher, oito mil. Antes de decidir quem será o vencedor, o juiz quer saber como é que se contam terminações nervosas. Apenas para evitar constrangimentos, sua excelência faz a seguinte consulta técnica junto a um especialista credenciado na vara dita de família:
– É possível contar essa quantidade enorme de terminações nervosas naturais sem recorrer à inteligência artificial?
– Sim, excelência, mas isso pode levar muito tempo.
– Então requeiro uma acareação – disse o juiz, já expedindo a seguinte ordem, numa escrita escorreita:
– “Determino a convocação dos litigantes para que se proceda a uma acareação entre o Pinto Mudo e o Grelo Falante.”
Como juízes sempre esquecem de pôr o pingo nos ii, o público delira, exceto os menores de 18 anos, ou 21, sei lá, porque não podem assistir ao espetáculo de acareação jurídico-pornográfica.
Encerrada aquela etapa do julgamento, o juiz, que enxerga muito mal, pergunta:
– Alguém viu meus óculos?
– Meuzóvo? – pergunta o auxiliar de justiça, que se encontra bem ao seu lado.
Enquanto isso, o Pinto Mudo permanece calado, como lhe confere o direito ao silêncio.
Ao término dos trabalhos, assim conclui o auxiliar de justiça:
– Quando um pinto mudo fala, tudo que ele disser poderá ser usado contra si. Aprendi isso num filme americano, diante do telão, comendo pipoca em alguma sessão da tarde, quando “estudava” para o meu concurso público.
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