CARIOQUICES PARNASIANAS

 

Vitor de Athayde Couto

 

Lourinho era seu apelido. Nascido e criado em Parnasia, gostava de perambular pelo centro da cidade, nos idos cinquentas. Entrava e saía das casas comerciais (interagia, em parnasianês). Muito conhecido entre os caixeiros e fregueses. Papo fluente, rico vocabulário, sotaque de locutor de rádio. Puxava pelo erre, bem no estilo Nelson Keys, da Rádio Cultura. Impressionava bastante quem não o conhecia, mas logo sumia ou se escafedia, na verdade. Seu desaparecimento ocorria por uma ou duas semanas, não mais.

 

– Cadê o Lourinho? – perguntou um freguês de cafezinho do Bar do Abrigo.

– Já voltou do Rio? – perguntou outro.

– Dessa vez ele tá é demorando!

 

Até que… gngngn… Ninguém aguentava e arnegadinha caía na gargalhada. Aviso aos patrulheiros: nada a ver com preconceito racial. Lourinho era só apelido, e negadinha era como a molecada mestiça parnasiana se tratava, uns aos outros, sem discriminação. Para ser mais exato, naquela Praça da Sé, infestada de culumins e lacerdinhas, ninguém era louro de verdade. Nem branco. Olho azul só se for lente artificial.

 

Curiosamente Lourinho costumava sumir. Trancado no próprio quarto, ficava dias inteiros ouvindo rádios cariocas, com a maior atenção. Como tinha boa memória, decorava todas as notícias, caprichando nos detalhes de como elas eram apresentadas pelos locutores. Sabia na ponta da língua todos os textos das propagandas de cafiaspirina, brahma, saúde da mulher, pílulas-de-vida-do-doutor-ross, cera parquetina e água inglesa.

 

Lourinho era muito culto. Boa memória e inteligência teriam feito dele um grande ator, não fosse a dislexia. Trocava letras, invertia o conteúdo da fala, além de outras maluquices que o tornavam mais engraçado e centro das atenções dos desocupados à procura de diversão digrátis. Mesmo assim, demonstrava muita segurança ao fazer o relato de cada “viagem” que fazia ao Rio de Janeiro.

 

Graças ao rádio, Lourinho escaneava a cidade maravilhosa, como se diz. Conhecia todas as ruas do centro, com suas lojas e bares. Sabia até dos esconderijos de cambistas de jogo do bicho – e com que precisão! Conhecia tudo, desde o Largo da Carioca até o Tabuleiro da Baiana.

 

Finalmente, tcharã! O nosso Lourinho real ressurgia na praça parnasiana e fazia o seu relato de viagem. Começava pelo bar do galego Aragones, e prosseguia pela casa Christino, loja do seu Marú, salão Tujague, discoteca do Rei Momo, casa dos esportes e por quase todas as lojas do calçadão, entrando na Triunfante, na Vencedora, no Armazém Bandeirantes, na livraria A Escolar e na Casa Carvalho, esquina da praça Coronel Jonas, fazendo xis com a Casa Siqueira. Daí, ia encher o saco do Caramba, no Cine Teatro Ritz.

 

Após duas semanas sem tomar sol, Lourinho exibia uma pele de coloração patriótica, amarelo-esverdeada. Masturbava-se tanto, no seu retiro erótico entre catecismos de Carlos Zéfiro, que emagrecia, mas não perdia o discurso. Jurava que saía toda noite com cariocas gostosíssimas de Copacabana, bairro onde ele sempre se hospedava. A boate Zum Zum era a sua náite preferida, onde Lourinho lá sempre encontrava Vinicius de Morais, Dorival Caymmi, o conjunto Oscar Castro Neves e as baianinhas do Quarteto em Cy.

 

 

A VIAGEM

 

Com a decadência da navegação de cabotagem, Lourinho passou a voar pela Real Aerovias. Ele sempre pernoitava em Recife, para aproveitar melhor a viagem. O locutor da famosa rádio caprichava nos erres: “são precisamente oito horas na capital pernambucana…” De memória, nosso herói caprichava ainda mais, com direito a dislexia: RRRádio JoRRRnal do ComméRRRcio / PeRRRnambuco falando para o mUUUndo! São “pRRRincipalmente” (dislexia) oito horas na capital peRRRnambucana…

 

Mas, em Parnasia, chique mesmo era imitar o sotaque carioca. Por essa razão, Lourinho caprichava no chiado ao relatar sua ida ao Flaflu, no Maracanã. Bons tempos, não havia milícias nem brigas de torcida. Cada parnasiano torcia pelo seu time carioca. Em todas as parnasias do Brasil havia times com os mesmos nomes dos grandes do Rio de Janeiro. O Fluminense tinha sede onde o carnaval era bastante disputado. Nos carnavais parnasianos ainda se ouve cidade maravilhosa, divina e perigosa. É preciso estar atento e forte / não temos tempo de temer a morte (ouça aqui).

 

 

ÓTIMA NOTÍCIA:

 

A cidade dá sinais de que voltará a ser maravilhosa. Há mais de 20 anos parado, o relógio da Mesbla voltou a brilhar, para encantamento dos frequentadores do Passeio Público, no Rio de Janeiro. Com a mesma elegância de Drummond, Lourinho volta ao seu banco habitual, de onde assiste ao desabrochar das flores dos abricós-de-macaco. Banco, no bom sentido, onde só se roubam óculos.

 

 

COMENTÁRIOS:

 

A propósito da crônica Delivery, um leitor informou que eu serei convocado para depor na CPI do MEC, ops, do MAC. Perguntei por que, mas “até o momento este blogue não recebeu nenhum retorno” haha.

 

A respeito da ilustração da crônica, duas leitoras analisaram a posição da faca no couvert (serviço) e confirmaram o erro. Uma delas revelou que “o arranjo dos talheres é só um pequeno detalhe”, querendo dizer que acontece muito mais inconveniências nos banquetes. Para quem pensa que etiqueta é bobagem, gostaria de relatar um fato que aconteceu com outro leitor.

 

Convidado por um amigo para comemorar o seu casamento, num restaurante parnasiano considerado muito chique, ele esperava por um prato com bastante molho, para harmonizar com o vinho, conforme a “comanda” (argh!). Servido o prato, ele procurou o pão, mas… cadê? Um convidado, à sua esquerda, e, outro, à direita, já tinham “confiscado” os dois pratinhos do pão e as respectivas faquinhas da manteiga. Seus copos também sumiram. Enquanto isso, uma tropa de garçons estressados e indiferentes serviam refrigerantes, cervejas, água e sucos, não importando em qual dos diferentes copos que se encontravam perto de cada prato. Para relaxar, o leitor começou a observar uma família de turistas australianos (pais, avós e dois garotinhos) que almoçavam a pouca distância. Quase não acreditou quando viu que os dois garotinhos, de aproximadamente 7 e 9 anos de idade, orientados pela avó, juntavam o polegar e o indicador, deixando os demais dedos esticados. Dessa forma, eles logo aprenderam que na mão esquerda formava-se uma letra “b” de bread (pão), e na direita uma letra “d” de drink (bebida). E ainda há quem diga que os australianos são ockers.

 

(próxima crônica: “INGLÊS É UMA LÍNGUA MUITO ESTRANHA”)

 

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Escute o texto com a narração do próprio autor: