CATULO, O CEARENSE, E A INDEPENDÊNCIA DA FRANÇA

 

Vitor de Athayde Couto

 

Independência da França? Ora, isso são chalaças à Voltaire, segundo Galerão, com a sua velha mania de plagiar Eça de Queirós, até no pensamento. O problema é que não dá pra confiar em plagiadores como Galerão. De vez em quando ele inverna e se mela na fubuia. Mas, num raro momento de lucidez, antes do coquetel de coroamento da solenidade na academia para a qual havia sido convidado, ele pensou:

 

– O caba é mesmo corajoso! – Refere-se ao orador que palpita no púlpito.

 

Dirigindo-se à plateia do grande auditório, na academia científica mais douta da cidade, o orador anuncia, pelo microfone, informações que acabara de obter num repentino surto de mediunidade. Galerão jurou pra mim que o caba ainda repetiu que estava mesmo bem ali. Ali, ó… sentado à mesa dos trabalhos, quando deu a costumeira cochilada parlamentar. Muito desavergonhado, insistiu que não era cochilo, tratava-se de mediunidade. E ainda garantiu. Como ninguém duvidou, ele começou seu discurso assim:

 

– Acabo de ter uma visão. Encontrava-me eu, em Paris, no interior de um grande salão finamente decorado…”, e prosseguiu, tranquilamente, como se a academia fosse um centro kardecista ou o baixo clero do congresso nacional.

 

Oxênte, surpreendeu-se Galerão. Seria a Assembléia Constituinte de 1789? Em plena revolução? Salão finamente decorado no meio de tanta escaramuça? Sei não… O caba é mesmo corajoso. Nem o coisa ruim duvida. Com aquele auditório lotado de tanto peagadê… eita! Vai rolar fáite!

 

Rolou nada. A hesitação do orador transforma-se em mais uma pausa, sempre à espera da claque. De fato, vêm os primeiros aplausos, puxados pelos come-na-mão, que se sucedem inúmeras vezes. O orador tem aquela manha de dar uma paradinha-espera-aplauso, e… evém mais ovação. Calma, ninguém está jogando ovo. Naquela noite de lua cheia, orador e platéia estão dignos um do outro. Ninguém se lembra do lobisomem, tamanha é a concentração.

 

Num breve intervalo musical, alguém solta mais esta, ao apresentar a banda que vai tocar:

 

“Como dizia o poeta cearense Catulo da Paixão Cearense…”

 

Aí, Galerão perde o controle. Pede a palavra e pergunta, aos gritos, dispensando o microfone, para tristeza da estagiária ociosa, temporária, precária e contratada, de boca, pela empresa de eventos:

 

“Quer dizer que, se o nome do poeta fosse Catulo da Paixão Maranhense, ele seria maranhense? haha”

 

Sem resposta, Galerão já tava em dúvida. Começava a pensar que o Catulo era maranhense e tinha alguma paixão cearense… Resolve dar uma saidinha. Faz o seu costumeiro teste dráive na sala do coquetel, que ainda está sendo arrumada. Coisa pouca, só uma meóta de uísque falsificado, batizado com água de coco de garrafa, vencida como todo coquetel doado. De volta ao auditório, belisca-se. Será que foi o uísque? Infelizmente, não. Galerão não está sonhando. O orador real continua lá, insistindo. Cada vez mais confiante na sua mediunidade, o caba ainda acrescenta:

 

“Em Paris, ouvi, emocionado, o discurso de Voltaire! O nosso grande mestre enaltecia a queda da Bastilha! O 14 de Julho! Data comemorativa da Independência da França!”

 

“Caba corajoso, rapá. Esse ganhou pra mim”, pensou Galerão, já um pouco agoniado.

 

Aquele nhém-nhém-nhém-gatu parece não ter fim, porque, na academia, coordenador de mesa nunca controla tempo de orador que oferece o coquetel, mesmo vencido. Na mesa dos trabalhos, orador-patrocinador sempre tem boca livre, até o auditório começar a esvaziar. Galerão não aguenta mais. Corre de volta ao teste dráive e pede socorro ao barman, seu parça: “Tião, mermão! Me dá aí mais outra lapada daquele paraguaio! Quero puro, sem água de coco, sem guaraná, sem gelo, sem porra nenhuma!”.

 

Olhando no fundo do copo, vê seu rosto refletido no dito uísque, e pergunta:

 

“Espelho meu, no dia 14 de Julho, a França ficou independente de quem, pelo amor de Deus? Qual foi a porra da metrópole que colonizou a França?”

 

Como o uísque é falsificado, a resposta não vem segura. O espelho hesita entre Portugal, Espanha, Holanda, Cuba e Venezuela haha. O certo é que, até hoje, Galerão continua invocado com essa lacuna dos historiadores, pois os livros escolares não dizem nada sobre a guerra da independência da França… Isso só pode ser coisa do gúgli ou do uískipedia-com-bastante-gelo haha.

 

(próxima crônica: “CARANGUEJO OU CARANGUEIJO?”)

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Escute o texto com a narração do próprio autor: