GOSPEL
Vitor de Athayde Couto
Quem foi que disse que as coisas do passado eram melhores? Ainda me lembro, como se fosse hoje. Pai e mãe presentes, eu e meus irmãos, caminhando pela cidade escura e sem asfalto. Tudo era sem graça, ninguém conhecia gospel.
Dez passos, e já nos deparávamos com uma sorveteria sem graça, onde só havia sorvetes de frutas naturais da feira. Não existia gelato inderretível, industrializado, ultraprocessado e porcionado, com direito a espessante, acidulante, umectante, emulsificante, conservante, edulcorante e outros antes… numa linda embalagem plástica colorida, com direito a emenemes. No passado só havia sorvetes sem graça, enfiados em cartuchos artesanais e disformes. E a gente ainda comia aquilo, credo!
Dávamos mais dez passos pelas calçadas e já ouvíamos música sem graça, que emanava de uma loja de discos – e ninguém conhecia gospel. Mais dez passos, e sentíamos o cheiro de uma bomboniere, dominado pelo mel de abelhas abelhudas. Depois, outra sorveteria, mais outra, e assim por diante.
Hoje, não. Pai e mãe ausentes, dou dez passos na cidade iluminada e logo encontro uma academia. Ali adiante, uma loja de suplementos e outras bombas. Ouço o barulho de uma moderna ambulância apressada.
Dou mais dez passos, ouço outra ambulância e uma farmácia. Haja saúde e felicidade! Mais ambulâncias. Com frente, outra academia, uma igreja, uma casa lotérica com uma fila enorme, outra farmácia, algumas clínicas, muitas lojas de pets & rações, banho e tosa, mais uma academia, uma igreja, três farmácias no mesmo cruzamento, duas igrejas disputando alto-falantes, e assim por diante. Sem esquecer os bares, onde se vendem estupidamentes, tendo sempre à frente um paredão móvel tocando gospeis. Nem sei se existe plural dessa maravilha do século XXI. Creio que sim. Um gospel, dois gospeis, três gospeis…
Antigamente tudo era pior. Não havia tantas oportunidades de empregos para entregadores de pizza, uberizados em geral, coaches e cuidadores de idosos.
Bem-vindos ao futuro do pretérito!
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