JOIAS E OUTRAS DROGAS

 

Vitor de Athayde Couto

Estava tudo joia no aeroporto paulista de Bagulhos quando duas viajantes brasileiras tiveram trocadas as etiquetas das suas malas. Ficaram mais de um mês numa injusta prisão preventiva, na Alemanha, sob suspeição de tráfico internacional de drogas.

Naquela mesma ocasião, o raioxís apitou na mala de mão de um velho professor-pesquisador que pretendia embarcar para apresentar os resultados da sua mais recente pesquisa, num congresso de saúde coletiva, em Zurique. A sua tese versava sobre a necessidade da universalização das vacinas em humanos. O fiscal, um jovem colaborador terceirizado e mal treinado, confiscou a sua tão minúscula quanto preciosa caixinha contendo três lâminas de barbear blue blade, daqueles modelos bem antigos, difíceis de se encontrarem no comércio. Depois de meses procurando lâminas da marca Gilette, o professor finalmente havia comprado, em uma farmácia paulistana, lâminas genéricas do tipo vintage. Mesmo assim elas eram perfeitamente adaptáveis ao velho barbeador dos anos 30, que ele havia herdado do seu falecido pai.

E agora? Como como viajar como o piloto de um dos maiores aviões comerciais do mundo tem medo de uma inofensiva gilete? Objeto cortante? Qual o significado disso? Eis aí um conceito. Para o raioxís, um simples alfinete se enquadra na categoria de objeto perfurante. Não demora, a inteligência artificial terá a última palavra, e a nossa vida será apenas mais um joguete na tela de um VAR desalmado e sem coração.

Antes de retornar do congresso, o velho professor-pesquisador havia comprado alguns livros em Zurique. Ao passar novamente pelo raioxís de Bagulhos, o alarme fez um escândalo e todo mundo olhou. Procurando saber o que houve, o velho professor-pesquisador ouviu o fiscal, outro jovem colaborador terceirizado e mal treinado, perguntar:

– O senhor está levando livros?

– Sim, senhor.

– Nesse caso, vamos ter que abrir sua mala.

– Perfeitamente, eu sei que livros científicos representam um grande perigo aqui no Brasil – ironizou o professor, do alto de sua sabedoria.

O jovem colaborador terceirizado designou uma jovem colaboradora terceirizada para verificar o conteúdo da mala. Depois de inspecionar os livros, a jovem colaboradora terceirizada dirigiu-se ao jovem colaborador terceirizado e disse:

– Tudo joia, pode liberar.

E, assim, o velho professor-pesquisador respirou profundamente, pensando que já estava bom de morrer. Sorriu, triste, na certeza de que a universalização das vacinas poderia salvar a vida de milhões de pessoas, isto é, se a burocracia pastoral deixar.

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