Ao longo da vida devo ter contraído muitas dívidas de caráter imaterial, mas nunca de natureza pecuniária. Exemplo: débito para com Parnaíba, que me tem dado tudo: “berço-cama-mesa”.
Na luta contra dívidas, sempre que é preciso apertar o cinto, aperto-o, o que não é mágica mas controle financeiro e crença na matemática e na contabilidade. É não gastar mais do que ganha. Simples como dois mais dois são quatro.
Há momentos na vida em que é plenamente justificável o endividamento: nas questões de saúde, de educação, de alimentação etc. Nesses casos os fins justificam os meios.
Em situação de extrema pobreza não se pode falar em inadimplência do cidadão porque na hipótese o que existe é dívida social, dívida dos que têm muito para com os que nada possuem.
O jogo de azar também atrai dívidas. Que o diga Fiódor Dostoiévski, um dos mais importantes escritores russos de todos os tempos. Atolado em débitos e viciado em jogo, o genial romancista recorreu várias vezes a editoras a que vendia direitos autorais antes de começar a escrever o livro. Fernando Pessoa vivia pedindo dinheiro emprestado a familiares e a amigos. Dificilmente quitava o débito até porque não tinha como fazê-lo. Quando não morava com parentes tinha enorme dificuldade em pagar o aluguel.
Grande parte dos endividados são arrastados pelas vicissitudes da vida a essa situação. Alguns até se matam.
Por outro lado, existem os que desfrutam de razoável condição financeira mas cultivam compulsivamente o gosto pela dívida. Via de regra não se trata propriamente de caloteiros. A eles pode-se creditar, sem necessariamente nela acreditar, a frase pronunciada com alegria e tranquilidade: – “devo, não nego, pagarei quando puder”. Essas pessoas, que parecem sentir prazer com o hábito, costumam honrar o compromisso, embora com atraso. Para essa categoria na relação devedor/credor quem deve se preocupar é o segundo, que muitas vezes é também responsável pelo desregramento habitual como se todos fossem farinha do mesmo saco.
Claro que não se deve condenar a compra à prestação, que é indispensável no mundo dos negócios. Parcela paga tempestivamente não representa dívida, que surge com a prestação vencida e não paga.
O problema é que muitos consumidores se descontrolam financeiramente pelo acúmulo de compras a prazo, a ponto de várias vezes se verem compelidos a apelar a agiotas ou a bancos (aliás o maior de todos os agiotas) para quitar o que devem. Resultado: salto em poço sem fundo.
Na condição de advogado do Banco Real S.A., da Caixa Forte e de procurador federal lidei durante muitos anos em Parnaíba com ações de cobrança ordinária, de execuções forçadas e de execuções fiscais contra pessoas físicas e jurídicas. Palavras como exequente, executado, certidão de dívida ativa, duplicata, nota promissória, cheque, citação, juros de mora, multa, correção monetária, alienação fiduciária, parcelamento, penhora, arresto, busca e apreensão, adjudicação povoavam meu universo de trabalho.
Cuidava desses conflitos com seriedade e serenidade, mas sobretudo com respeito ao devedor. Eu sabia que era cômodo para o advogado patrocinar ação respaldada em título de crédito vencido e não pago. Quer dizer: simples problema de direito líquido e certo. O bom de tudo é que não me lembro de ter feito qualquer inimizade por conta do encargo profissional.
Acho que devo especialmente à experiência funcional a inspiração para o soneto “Dívida”, escrito em 1985 e cujo verso final não passa de uma adaptação jocosa do seguinte princípio jurídico da presunção da inocência: – “in dubio pro reo”. Eis o soneto:
DÍVIDA
difícil o indício da dívida
difícil o início da dívida
difícil o exercício da dívida
difícil o resquício da dívida
difícil o benefício da dívida
difícil o malefício da dívida
difícil o sacrifício da dívida
difícil o sub-reptício da dívida
difícil o vício da dívida
difícil o ofício da dívida
difícil o artifício da dívida
difícil muito difícil a dívida
mais difícil que a dívida a vida
– na dúvida pau no réu.
Por Alcenor Candeira Filho.