BRINCAR DE MÉDICO…

 

Vitor de Athayde Couto

 

…é melhor que boneca. Boneca mutante, cansada de lero-lero. Saúde, Rita Lee! Você ainda vai fazer um monte de gente feliz. #Força, titia do rock!_#Vai dar certo!

 

Apesar, contudo, todavia, mas, porém, quem nunca brincou de médico? Quem nunca teve primos e primas, mesmo de mentirinha?

 

Festonas de família atraem parentes e serpentes que chegam de toda parte. Na penúltima etapa da viagem a família aglomera-se em um navio gaiola repleto de redes. Primos e primas abundam haha. Finalmente, na última etapa, vejo-me, em posição fetal, dentro de um garajáu encangado no lado esquerdo de um burro branco de tão velho. Do lado direito, em outro garajáu, acomodaram um primo com peso equivalente ao meu, para equilibrar a carga. Funciona assim: um burro carrega dois primos de oito quilos cada. Outro burro leva outros dois, cada um pesando dez quilos. É uma verdadeira tropa de burros… e primos.

 

Finalmente, chegamos. Casarão de avós sempre tem espaço pra multidões. Redes na varanda, frutas no quintal, conversas na calçada, correria na praça da igreja.

 

Nas bodas de ouro, o casarão parece ainda maior. Aos cinco anos de idade já consigo perceber que os primos maiores instalam um consultório num anexo da cozinha. Na origem, parece ser um depósito de ferramentas. Lembro de uma divisória feita com um lençol branco, encardido das brincadeiras noturnas de fantasma. Lembro também do entra e sai de meninos. Mas só se entra por ordem de chamada, liderada pelo primo mais velho.

 

Espero um tempão do lado de fora. Tímido, miúdo e bobinho, sou chamado por último, coração saindo pela boca. Confesso que nunca mais senti tanta emoção na vida. Afinal, era a minha primeira “consulta”. Atrás do misterioso lençol, uma prima muito pequena, que tem mais ou menos a minha idade, está deitada no chão, só de calcinha. Imóvel e obediente às ordens dos “médicos”. Os mais velhos disputam as melhores especialidades. Uns brigam para ser o que hoje entendo como ginecologista. Outros disputam as funções de mastologista, dentista… Surpreso, ouço o líder dizer que eu vou ser o pediatra. Pergunto o que é pediatra. Um primo, ao meu lado, diz que pediatra é o médico que cuida de criança. Tudo? – pergunto novamente. Não, disse o líder. Hoje você vai pegar só nos pés da menina. Pé-diatra, entendeu? Sim – respondi e obedeci. Olho aqueles pezinhos descalços e sujos, sem coragem de tocá-los. É que todo mundo anda descalço pelo quintal, galinheiro, chiqueiro, curral… De volta pra casa, as mães capricham na agulha de pregar botões pra tirar bichos-de-pé.

 

Sempre fui cercado de médicos na família. Hoje eu me pergunto por que tantos jovens querem ser médicos, mesmo sem ter nenhuma vocação. Facilidade devido ao excesso de cursos de qualidade duvidosa? Querem status, emprego, dinheiro? Ou querem só brincar de médico? Desconfio que, estando muito ocupados com gadgets eletrônicos, esqueceram de brincar de médico na idade certa.

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Escute o texto com a narração do próprio autor:

 

 

COMENTÁRIOS – Outros leitores revivem lembranças…

 

ERRATA – Recebi, de um leitor de Tucano-BA, uma mensagem em que ele se reporta à crônica da última sexta-feira, 28/05/2021. Na crônica, intitulada “Donfiscote”, refiro-me ao filme “O homem que matou o facínora”. O título correto é “O homem que luta só”. Frequentador assíduo do antigo Cine Marajó, de Serrinha-BA, onde “fazia rolo de revistas na porta”, informa também que “Matar ou morrer”, erroneamente atribuído a Randolph Scott, foi estrelado por Gary Cooper. Peço desculpas e agradeço pela informação valiosa que muito contribui para preservar a qualidade das crônicas.

 

Outros leitores revivem lembranças dos seus cinemas. Assim, eles fazem de Parnasia uma representação das cidades brasileiras e suas “tardes normais, mornais, e pulgas mil na geral.” (Caetano Veloso).

 

Transcrevo algumas mensagens:

 

“Bom dia. Sua crônica Donfiscote me fez lembrar o cinema de Camilo, um pai de santo que ganhou na loteria e construiu quatro cinemas na região Sudoeste da Bahia. Depois vendeu tudo para a Igreja Universal e morreu na miséria.”

 

“Em Itapetinga-BA tinha o Cine Teatro Fênix, onde, dizem, havia um mural lindo, pintado pelo grande artista plástico e escultor Mario Cravo Filho. O mural foi apagado por uma igreja que hoje reina sobre as cinzas da sétima arte.”

 

“Viagem no tempo. Boas lembranças do Cine Teatro Lux, no Orobó (atual Ruy Barbosa-BA).”

 

“Aqui na colônia italiana do Sul, havia vários Cinemas Paradiso. Alguns não tinham cadeiras, cada um levava a sua.” (Serra Gaúcha-RS).

 

“Em Ipiaú-BA, frequentei o Cine Éden, o mesmo que Paraíso (ou Paradiso).”

 

“Muito bom haha. Lembro bem do Caramba, no Cine Éden. O Miguel Carcamano ficava pau da vida com a quebradeira de cadeiras.”

 

“O filme (Cinema Paradiso) é lindo. Inesquecível para mim. Fine.” (Santiago, Chile).

 

“Adoro esse filme. Tenho a trilha, foi o primeiro CD que comprei, em 1992. Eu não ia ao cinema, morava no campo. Às vezes via filmes que o padre passava pras crianças, na Casa Paroquial da cidade vizinha, próxima ao sítio em que eu vivia. Na minha cidade natal tinha um cinema que se chamava Cine São Pedro.” (Colônia italiana, SP).

 

“Que maravilha! [a música de Ennio Morricone]. Ouvir o solo de um oboé, acompanhado por violas, com a flauta fazendo sua parte. Bela orquestra e coral.”

 

“Cinema Paradiso eu vi três vezes e chorei nas três vezes. Aqueles beijos emendados no final, aquilo foi genial.” [beijos que o padre censurava].

 

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Escute o texto com a narração do próprio autor: