SOLTARAM AS ONÇAS

 

Vitor de Athayde Couto

 

Domingo de sol. Todos os parnasianos “estão funcionando regularmente”. Praia de manhã, almoço mais tarde, cochilo, banho seguido de muita brilhantina e laquê nas cabeças adolescentes. E Lancaster! Tal uma grande lagarta, a fila do cinema Paradiso vai se mexendo para a sessão das 18:30. Logo após o The End, todo mundo vai rodar na praça. Rapazes e moças, ansiosos pela tão esperada meorinha de cantadas, comentam o filme. As moças rodam no sentido horário; os rapazes, no sentido contrário. Hora de exibir as novidades, desde o permanente no cabelo, rolexes, saias plissadas, conjuntos Banlon, até as camisas-volta-ao-mundo! Tudo novo, comprado no Rio, pela Cruzeiro. Só os malas não rodam. Ficam parados, no meio da praça, falando merda e frescando com quem passa.

 

A azaração tem que rolar entre 20:30 e 21:00, quando termina a missa. Da catedral saem pais corujas, braços dados, arrastando filhas não cinéfilas e filhos bundões. Direto pra casa. Quem fica com quem não fica, nunca se sabe. Mal se conhecem os sonhos, até a hora em que chega a realidade: 21 horas, anunciam as badaladas do sino desafinado da matriz. Hora de soltar as onças.

 

Esvazia-se o estacionamento dos automóveis, lambretas e bicicletas, conforme as diferenças patrimoniais entre as famílias. Quem mora perto caminha pelas calçadas seguras, exceto os malas incluídos que vão de carro, ali pertinho, “só pra se amostrar”. Ah, ia esquecendo o estacionamento de balecos da gente diferenciada. Fica mais distante, depois do vento, móde o fedor de bosta. Agora são 21:08, a praça entristece e se desertifica. As tartarugas da pérgula nadam, silentes. Permanecem só o guarda e os seus eternos interlocutores de plantão, animados pelo corote. São os malas desincluídos, deficientes e mendigos sem teto, sempre de braços cruzados, olhando pro nada.

 

“Soltaram as ôôônças!”, grita um culumim, à distância. “Queima o tabaco da êêêma!”, grita outro. “É a tuáááma, Datilôôôia!”, mais outro. E assim, de culumim em culumim, a praça escurece em meio aos gritos saídos de bocas invisíveis, escondidas do guarda.

 

Os globos dos pequenos postes de ferro se apagam. Protegido pela escuridão, alguém grita: “Seu Fulano é côôôrno!”. Normalmente, seu Fulano é quase sempre um grande e respeitável negociante rico que acabou de comungar, logo depois de pedir perdão pelos pecados, principalmente as mentiras, conspirações políticas, sonegação de impostos e traição conjugal; ou por ter espancado a mulher e uma frágil filha adolescente. Ele sabe que, amanhã, segunda-feira, começa tudo de novo. Mas Deus é bom e tudo perdoa sete vezes sete vezes sete…

 

Já em casa, enquanto repassam na mente as últimas imagens da vesperal, as moças de família sonham, metidas em babydolls de náilu. Não sem antes de resumir no querido diário, sob a luz do abat-jour, as cantadas ouvidas na meorinha. Para elas, a vida se resume a esse tempo, pelo qual esperam a semana inteira, entre rezas e promessas fáceis. Isso ocorre em quase todas as semanas do ano. As moças de família odeiam as onças invisíveis e o tempo que passa. Odeiam o inverno. Quando chove, não tem domingo. A semana pula direto, de sábado pra segunda-feira. Sem praça, sem graça. Mesmo assim adormecem sonhando com Caries Grants.

 

Ainda na náite, alguns rapazes de família de bem (dizia-se: “da sociedade” haha) também abandonam a praça. Em vez de irem direto pra casa, dirigem-se aos cabarés, à procura de mulheres virtuais esgotadas pelo fim-de-semana, nas altas horas de domingo, quando só resta o bagaço. “Pelo menos é mais barato”, lembra um dos rapazes, para consolo dos companheiros lupanáticos. Sorte é ter pai cabarezeiro. Escolhe a “modelo mais top” e negocia o cachê, quando o filho completa 15 anos. No clube, a filha debuta. No cabaré, o filho é da puta que o pai lhe apresenta. Mimo de aniversário, a primeira rapariga ninguém esquece. Nos dias seguintes, o pai apresenta o médico, a farmácia, os remédios… e o permanente sorriso orgulhoso de quem é pai de macho. Em compensação, presente de pai não-cabarezeiro é só livro. Que ódio! Quase sempre é o “Meu catecismo de preparação para a crisma” ou “Tarzã, o rei da jângal”. Mas poderia ser pior, um “Pequeno dicionário da língua portuguesa”, enquanto a irmã ganha “O pequeno príncipe” ou “Reinações de Narizinho”. E ainda com recomendação de colocar uma capa de papel impermeável fosco, e cuidar bem! “Não risque, porque vai servir para a sua irmã caçula!” haha.

 

Na praça, agora escura, só se vê uma lanterna, intermitente, para economizar pilha. É o guarda brincando de vagalume no breu. Pra afastar a solidão, apita e foca a lanterna nos cururus. Já no rumo dos cabarés, o magote grita, de uma distância segura: “O guarda não é mais aquele / o que é que se faz com ele”.

 

Ao longe, no silêncio truvo, já dá pra ouvir o som da vitrola do primeiro cabaré, no Beco do Xêramijo. A voz grave do Nelson Gonçalves mixa com os chiados do vinil que gira no pick-up de agulha vencida. “Fica comigo esta noite / e não te arrependerás…”. Nunca entendi por que “lá fora o frio é um açoite”, se faz sempre um calor da porra. A galera aperta o passo. Ao chegar no Anjo Azul, alguns rapazes hesitam. É um faz que vai mas num vai. Tremendo de medo, encontram uma pequena janela lateral, aberta. Corações trepidam. Aproximam-se mais. As cabeças se apertam na janela para espiar o proibido invisível.

 

No salão principal, o corpo de um bêbado dança sozinho, abraçado ao corpo de alguma fantasma real e romântica. Por cima da carne seca, uma gata prenha se lambe. Outro bêbado dorme sentado à mesa, com a cabeça dentro de um prato onde um resto de farofa acabou grudando na brilhantina Glostora. Um viado lava copos americanos. As últimas modelos sobreviventes permanecem sentadas, à espera de alguma esperança. Elas ouvem a música pela milésima vez, com a mesma atenção da primeira. À sua frente, a cerveja se aquece no copo do último cliente já esquecido e anônimo. Revezando-se para trocar o lado do mesmo disco do Nelson Gonçalves, uma se levanta, troca o lado A, depois, outra, o lado B, e mais outra no eterno bêabá, até o infinito. Rosário aproveita a levantada e vai mijar mais um pouco de cerveja quente no penico indiscreto. Joga o produto pela janela do quintal. Depois, volta. Sempre ao mesmo lugar, onde reencontra o seu fiel campo energético que lhe dá mais alguma sobrevida noturna, enquanto espera a luz do dia para dormir.

 

Do lado de fora, ainda na janela, os corações adolescentes saltam de emoção. Emoção inesquecível, porque só na idade do urubu é possível ser feliz. Com muito ou com pouco. Tanto faz. Mesmo que o cabaré tenha sido apenas um sonho de menino.

 

*A imagem meramente ilustrativa foi extraída do cartaz do espetáculo Tholl, Imagem e Sonho – Cabaré das Artes, do Grupo Tholl, Pelotas-RS, 2012.

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Escute o texto com a narração do próprio autor: