CURRÍCULOS RIDÍCULOS III

 

Vitor de Athayde Couto

– Iaí, mozinha? O tiozim deu algum retorno do currículo?

 

– Ainda não, mô. Liguei pra loja, ninguém atendeu. Mas fiquei sabendo que o tiozim, de tanto contar dinheiro, foi infectado e intubado. Melhor esquecer. Primeiro emprego só existe mesmo em bocão de político candidato.

 

Na mesma semana em que Tainá distribuía seu currículo, dona Fabiana, mãe da Gabrielle, de Jaboticabal, procurava sapatos para comprar. Com surpresa, viu uma etiqueta recortada onde constava o preço da mercadoria. No verso da etiqueta reconheceu uma foto do rosto da filha. Era o recorte de um currículo que ela tinha acabado de entregar naquela loja de calçados. Nas vitrines havia recortes de outros currículos presos nos sapatos expostos à venda.

 

“Traga seu currículo” é só uma frase que faz parte da narrativa de comerciantes que se auto-declaram “empresários”. Para eles, a vida dos jovens não tem nenhum valor. Alguma dúvida? Pois essa mesma narrativa circula também em muitas organizações e instituições pelo Brasil. O pior é quando a narrativa emana de um judiciário sem juízo, que vai desde um simples clube de bacharéis até a mais alta corte. Aí cabe a pergunta:

 

– A quem devemos reclamar? – perguntou o calouro, no curso de Direito da esquina. O professor terceirizado e engravatado respondeu, exibindo um anel de formatura enorme que emitem relampejos rubicundos:

 

– Insta que, diante do exposto e mais do que destas magnas aulas constam, respondo, como respondido tenho, julgar improcedente, como julgado tenho, de proêmio, et secundum tempus regit actum, tal questiúncula…

 

– TRIIIM !!! – soou a campainha, anunciando a hora do recreio. Um verdadeiro alívio para o professor terceirizado. Ele suava, o paletó empapava.

 

Na fila do creme de galinha, da cantina informal da dona Maroca da tapioca molhada, não se falava em outra coisa:

 

– Já soube? O júri popular foi adiado.

 

– O quê? Sacanagem! Lutei para conseguir uma senha! Eu queria tanto assistir à peleja do doutor Datavenia com o doutor Abescópio! Ia ser um espetáculo!

 

– Pois é, houve até um recurso…

 

– Que recurso?

 

– Suspeita de parcialidade do juiz.

 

– Pois eu já soube é que uma das partes pediu vistas do processo, sem prazo.

 

– Então… estão até dizendo que houve uma liminar…

 

– Não. Não é nada disso. – disse um estudante recém-chegado. Acabo de saber que… cortaram a energia do fórum! Por falta de pagamento. Usaram o dinheiro da manutenção do prédio pra comprar lagostas e vinhos premiados.

 

– Ôxe! Vinhos? Mas essas excelências só bebem uísque com água de coco.

 

Ora, ora, aqui no “Fórum Clóvis Bebe Água” ninguém trabalha sem vinho nem ar condicionado. O uso da gravata é obrigatório. Eles adotam roupas quentes pra gerar mais despesas, como o auxílio-paletó. Ademais, não fica bem para um juiz suar por baixo da toga. Vão pensar que ele mijou na constituição.

 

– E, vai ver, mijou mesmo. É tudo diferente do que ensinam na faculdade, né?

 

– Anhan… e esse “Fórum Clóvis Bebe Água”? Nome estranho…

 

– É… O Clóvis é uma exceção no meio desse bando de cachaceiros, haha.

 

– O juiz titular vai mandar prender o funcionário da distribuidora de energia…

 

– TRIIIM !!! – soou a chamada para a aula de Ética Profissional do Advogado.

 

– O que é moral? – perguntou o professor terceirizado, já iniciando a aula.

 

Diante do silêncio eloquente, outro calouro perguntou:

 

– Professor, por que alguns bacharéis são chamados de “doutor” e outros, não?

 

– A sua pergunta é muito importante… – gaguejou o professor.

 

Claro, né? Tem que valorizar a única pergunta daquela manhã. Pergunta a ser brindada com mais uma pseudo responsionem ad nauseam.

 

A pergunta remete para um artigo que li, faz tempo. Não lembro o nome da autora. Ela atribuía essa “cultura brasileira” ao poder que médico e advogado têm sobre o corpo da gente. O primeiro seda, passa a faca e costura o corpo. O outro livra o corpo (corpus) da prisão. Quanto ao engenheiro da pergunta feita pelo oficial de justiça, as lajes de concreto dos prédios também caem sobre corpos. E matam. No Brasil, os desabamentos são frequentes.

 

Mas, dos três profissionais que têm domínio sobre o corpo humano, o mais folclórico é o dotô adevogado; melhor ainda, é o dotô delegado.

 

Quem não se lembra da “Confissão de caboclo”, com Rolando Boldrin?

 

Dotô delegado /

 

Digo a vossa sinhuria /

 

Que inté onte eu fui casado…

 

E da inesquecível “Vingança de sordado”, com Tonico e Tinoco?

 

Tava o dotô delegado /

 

Na sua mesa sentado /

 

Quando um home ali chegou…

 

Pois é, caro leitor. Ouça “Confissão” e “Vingança”, e preste atenção na letra. Chamou bacharel de dotô, já sabe. Ou é para não ser preso, ou porque juntou complexo de corno com medo de chifre. Como se chifre doesse, haha. Mas, e a liminar monocrática? Será revogada pelo plenum placidae plutocrático, para a gente poder acompanhar a peleja entre Datavenia e Abescópio? Ops, discupaê! Doutor Datavenia e doutor Abescópio?

 

(Continua)